O medo da vergonha pode ser um convite para visitar abismos

Quando foi a última vez que você flertou com o improvável? Falo sobre tomar atitudes que ninguém achava que você deveria realizar, mas as experimentou. Em certos casos, nossa cultura considera que surpreender os outros pode ser visto como algo ruim quando expectativas são contrariadas. E eu pergunto: “temos sempre que” fazer o que se espera de nós? A Comunicação Não Violenta (CNV) me ensinou que “não temos que” nada. 

Não nos contam isso muitas vezes por aí, mas nós podemos escolher fazer ou não aquilo que nos é proposto e, claro, naturalmente iremos encarar as consequências inevitáveis advindas das escolhas. O que frustra é quando essas consequências são emocionalmente punitivas e, portanto, evitáveis. Quer exemplos de punições emocionais? Seguem: “não vou mais falar com você”; “você me decepcionou”; “estou triste por sua causa”; “você não se encaixa”. Elas se resumem a formas de atribuição de culpa e desvalorização que miram pouco o bem-estar dos envolvidos para privilegiar uma pressão por mudança motivada pelo sentimento de vergonha.  

Quando o medo da vergonha nos mobiliza, estamos caminhando em direção a um abismo, pois ignoramos nossas reais intenções por fazer isso e não aquilo. Perdemos autonomia quando deixamos que os outros digam o que é bom para nós pensarmos, falarmos e fazermos sem que a gente ouça também o nosso coração. Aproveito para dizer que autonomia não significa se considerar autossuficiente e nem pregar qualquer tipo de negação da nossa interdependência com o próximo. Nada disso. 

Autônomo, para mim, é todo o indivíduo que sabe o porquê não quer fazer tal coisa e, se mesmo assim ela a executa, entende e se acolhe por isso, pois no balanço entre custo e benefício ele calculou, por exemplo, que não estava disposto a lidar com as consequências de exercer seu livre arbítrio. Ele não se culpa, mas vivencia o luto de ainda não saber ou não conseguir atender sua vontade de um modo que garanta seu amor próprio. Autonomia, sob minha ótica, tem mais a ver com perceber a si que tão somente exercer vontades.  

Julgamentos moralizadores  

Relações que se baseiam em atribuição recorrente de culpa, bem como em julgamentos moralizadores que fazem um e outro sentirem constantemente vergonha e nutrir pensamentos de desvalorização por si mesmo, não duram muito tempo. E se duram, tropicam, ainda que não caiam de uma vez. A curto prazo, incentivar o outro a ceder com medo de ser visto como ridículo funciona, mas no médio e longo prazo isso é trágico. Veja o que disse o psicólogo Marshall Rosenberg na obra Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais, da editora Ágora: 

“Todos pagamos caro quando as pessoas reagem a nossos valores e necessidades não pelo desejo de se entregar de coração, mas por medo, culpa ou vergonha. Cedo ou tarde, sofreremos as consequências da diminuição da boa vontade daqueles que se submetem a nossos valores pela coerção que vem de fora ou de dentro. Eles também pagam um preço emocional, pois provavelmente sentirão ressentimento e menos autoestima quando reagirem a nós por medo, culpa ou vergonha. Além disso, toda vez que os outros nos associam a qualquer desses sentimentos, reduzimos a probabilidade de que no futuro venham a reagir compassivamente a nossas necessidades e valores”. (página 39) 

Ele acrescenta: “Aqui, é importante não confundir juízos de valor com julgamentos moralizadores. Todos fazemos juízos de valor sobre as qualidades que admiramos na vida; por exemplo, podemos valorizar a honestidade, a liberdade ou a paz. Os juízos de valor refletem o que acreditamos ser melhor para a vida. Fazemos julgamentos moralizadores de pessoas e comportamentos que estão em desacordo com nossos juízos de valor”. (página 39)

Ouça menos vezes as autoridades

Rosenberg vai chamar essa forma como aprendemos a interagir, baseada em julgamentos, de “comunicação alienante da vida”. Vamos consultá-lo de novo?

“A maioria de nós cresceu usando uma linguagem que, em vez de nos encorajar a perceber o que estamos sentindo e do que precisamos, nos estimula a rotular, comparar, exigir e proferir julgamentos. Acredito que a comunicação alienante da vida se baseia em concepções sobre a natureza humana que exerceram influência durante vários séculos (…). Aprendemos desde cedo a isolar o que se passa dentro de nós”. (página 47)

Para transformar culturas é preciso a mesma paciência e dosagem de energia que nos embalam durante uma maratona. Esperaremos décadas para avançarmos menos do que gostaríamos. Por isso, celebremos cada passo em direção a esse novo mundo. Finalizo com Rosenberg, um de nossos nosso guias nessa jornada, ainda na página 47:  

“A comunicação alienante da vida tanto se origina de sociedades baseadas na hierarquia ou dominação quanto sustenta essas sociedades. Onde quer que uma grande população se encontre controlada por um número pequeno de indivíduos para o benefício desses últimos, é do interesse dos reis, czares, nobres etc. que as massas sejam educadas de forma tal que a mentalidade delas se torne semelhante à de escravos (…). 

Eu faço um parênteses para acrescentar que, neste caso, Rosenberg fala da escravidão como cerceamento da liberdade no sentido emocional, ou seja, numa situação psicológica, que era a sua área de atuação, e na qual a vítima possui contexto social para conquistar sua liberdade, desde que deseje e, claro, tenha o apoio de que precisa. Já a escravidão literal, página triste da nossa história que nos revolta e endivida nossa sociedade até hoje, é um fenômeno alheio à vontade do escravizado. Que possamos vencer esse passivo social e avançar rumo a uma sociedade igualitária!   

Dito isto, voltemos para o texto do psicólogo: “A linguagem do “errado”, o “deveria” e o “tenho de”, é perfeitamente adequada a esse propósito: quanto mais as pessoas forem instruídas a pensar em termos de julgamentos moralizadores que implicam que algo é errado ou mau, mais elas serão treinadas a consultar instâncias exteriores -as autoridades- para saber a definição do que constitui o certo, o errado, o bom e o mau. Quando estamos em contato com nossos sentimentos e necessidades, nós, humanos, deixamos de ser bons escravos e lacaios”. De novo, do ponto de vista emocional. 

Reflitamos sobre como vamos mudar o que precisamos em nós e no mundo. 

*Fábio Pereira é jornalista, mediador de conflitos e facilitador de Comunicação Não Violenta (CNV). Integra a ONG CNV em Rede e coordena a Câmara de Mediação Pacific. Instagram: @fabio.dialogos

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Jornalista e mediador extrajudicial com especialização em conflitos familiares e oficinas de parentalidade pelo Instituto Brasileiro de Mediação Familiar. É facilitador de Comunicação Não-Violenta (CNV), colaborando com a ONG CNV em Rede e integrando o banco de facilitadores desta disciplina na Escola Nacional de Administração Pública (ENAP). É colunista de CNV da Revista Raça.

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