O samba é delas: força feminina se consolida no ritmo comandado pelos homens
por FLAVIA CIRINO
Romper barreiras funciona quase como um ímã para a mulher negra, principalmente em ambientes nos quais a hegemonia masculina impera. o samba não foge à regra. tia ciata abriu o caminho, clementina de jesus fincou os pés, dona Ivone Lara – uma joia rara! Jovelina Pérola negra, Leci Brandão, Elza Soares, Alcione, Elaine Machado, Nilze Carvalho, Cassiana, Cariene de Castro, Teresa Cristina, Andreia Caffé, Flavia Saolli, entre outras, nos dão a certeza de que valeu a pena pedir passagem.
Com sua força natural, as mulheres negras seguem essenciais para que o samba siga como símbolo de resistência da cultura afro-brasileira.
Trazidas ao país pelos negros escravos no período colonial brasileiro, o ritmo foi “ameaçado” em 1941, quando foi sancionada a Lei da Vadiagem, que considerava ociosidade como crime e permitia a prisão de pessoas que andassem nas ruas sem documentos.
Homens negros que estavam desempregados, sem teto e vítimas do ferrenho preconceito racial da época, sofreram. Nos terreiros das casas das tias baianas, em especial de Tia Ciata, no Rio de Janeiro, o samba proibido acontecia, escondido, sem medo.
Cantar as injustiças sociais, a vida nos morros e nas periferias, a alegria e a resistência de quem tinha pouco dinheiro e até pouca sorte, era compartilhado por homens e mulheres negras. Passada a fase de opressão, as mulheres passaram a ter menos participação por conta de todo aparato machista da época, em que rua não era lugar de mulher. A predominância masculina foi, então, recuperada.
Embora o samba tivesse passado a ser aceito como cultura popular, reforçado por Getúlio Vargas com o movimento de valorização do que era brasileiro, o que faz o Brasil ser Brasil e a tentativa de incorporar uma falsa democracia racial de um país que, supostamente, aceita sua negritude e suas raízes, somente após a década de 60 as mulheres tiveram visibilidade no gênero.
Considerada a “Rainha do samba”, Dona Ivone Lara, de 97 anos nasceu em família de amantes da música popular e enfrentou o preconceito por ser mulher e sambista. Ela foi a primeira mulher a participar da ala de compositores de uma escola de samba, a Império Serrano, no Rio de Janeiro, ao final de 1960: “Resistimos até hoje”, disse.
Beth Carvalho, a “Madrinha do Samba”, não abriu mão de sua independência e afirmação feminina, mesmo frequentando ambientes claramente machistas: “Decidi ser sambista ao assistir Clementina de Jesus no espetáculo ‘Rosa de Ouro’. Senti uma negritude que existia em mim.
A mulher tem um papel muito forte e, desde sempre, as pastoras tinham o papel de definir os sambas das escolas. A mulher é fundamental como ponto de equilíbrio e o melhor exemplo é o respeito que os homens têm pelas mães e avós. E tem o lado religioso: ninguém faz nada sem consultar a mãe de santo. E eu, ao longo da minha carreira, procurei me afirmar como mulher, conquistar meu espaço, mas sem deixar de lado o papel acolhedor. Não à toa, acabei virando madrinha de muita gente que surgiu neste meio.”
O samba continua sendo hoje um gênero musical no qual há a predominância de homens, tanto dentro da indústria, como nos espaços onde ele é tocado popularmente. Cantoras, compositoras, líderes de escola de samba, musicistas, já não ficam mais caladas. Que o diga a sambista carioca Andreia Caffé. Cantora de partido alto, ela “bate de frente”: “Quebrar essa panela é difícil.
O samba é muito fechado para as mulheres e ainda existe um machismo total em relação às mulheres cantoras e musicistas. Melhorou, mas mesmo assim, ainda é perceptível que os músicos que nos acompanham lançam olhares de indiferença. Enquanto não dá pra quebrar essa panela, vamos amassando.”
Andreia Caffé carrega como lema a frase “o Samba é das mulheres”. Para ela, um grande estímulo a todas as profissionais do gênero: “Percebi que nas rodas de samba onde eu cantava somente os homens se aproximavam.
As mulheres não chegavam à roda de jeito nenhum. Eu precisava de uma maneira de trazê-las pra perto e comecei a falar essa frase. As manas vieram pra roda e nunca mais parei de falar. Virou o meu bordão e foi até citado na transmissão dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, por um repórter.”
Ainda falta muito o que conquistar, mas a mulher negra não tem mais sua importância minimizada no samba e seguem deixando suas marcas na história, com posturas questionadoras e atemporais nos versos sobre o universo feminino e sobre assuntos diversos. Há de se respeitar. O samba é delas!