O vinho é preto e as mulheres negras estão assumindo o comando dessa história
Por: Moara Sacchi
[Edição 226]
Irep en Kemet, sim, a cultura do vinho tem origem no Egito antigo, uma das civilizações mais antigas do mundo, com uma história capaz de nos fascinar até hoje. Essa não é uma descoberta recente, porém, ainda é pouco difundida na sociedade. Assim como por anos tentaram desafricanizar o Egito, embranquecer seus sujeitos e usurpar nossas riquezas, com a história do vinho não foi diferente. Hoje esse é o universo predominantemente branco e masculino, mas as mulheres negras vêm revolucionar essa história no nosso país, democratizando o acesso à bebida e à informação.
Silvana Aluá, sommelier que atua há mais de 20 anos na área de alimentos e bebidas, decidiu se dedicar aos vinhos, enfrentou inúmeras dificuldades, por ser uma jovem, negra, periférica e ainda de baixa renda frequentando espaços extremamente elitistas, a especialista conseguiu driblar todos os obstáculos e, em 2017, criou a Confraria das Pretas. “Ela criou um movimento lindo, a partir da dor”, destaca Mônica Faria, historiadora e integrante da confraria.
Em conversas com amigas e colegas negras amantes da bebida, Silvana percebeu que eram inúmeros os relatos de violências machistas e racistas sofridas em todos os espaços frequentados, seja no trabalho ou no ambiente de lazer e, a partir disso, ela resolveu propor reuniões entre as amigas para degustarem vinhos e trocarem saberes. A confraria começou assim e o que era uma reunião de amigas se tornou um espaço de degustação, confraternização e trocas, que recebe pessoas negras de todo o Brasil.
“O contato com outras pretas me ensinou muito, quando comecei ainda estava muito moldada ao que aprendi nas escolas, as harmonizações que me vinham à mente eram sempre com comidas europeias e elas me traziam diversos questionamentos nesse sentido. Por que não fazer com a nossa gastronomia?”, afirma Aluá. Os encontros presenciais, que aconteciam antes da pandemia e retornarão após a vacina, são feitos em roda, assim como as diversas práticas de nossos ancestrais; todos se sentam em círculo e se apresentam, pois, um dos intuitos das reuniões é também movimentar o black money. Há sempre uma convidada para conduzir uma conversa e dividir seus saberes sobre os mais variados assuntos; já passaram profissionais da moda, historiadores, especialistas em imagem pessoal, humoristas, poetas. É nessas conversas que Silvana explica
sobre os vinhos e uvas selecionadas para degustação daquele encontro.
“O nome é Confraria das Pretas porque eu fiz voltada para as mulheres negras, mas hoje começaram a vir os companheiros delas e também pessoas não binárias. É
aberta para todos os públicos da comunidade preta, mas o protagonismo é feminino”, explica a sommelier. Agora os encontros são virtuais e para participar basta acessar o site da confraria, preencher o formulário e o cadastro. Existem diversos encontros presenciais que retornarão após a pandemia, um deles se chama “Rolê do vinho”, que também surgiu a partir do incômodo das participantes. Todas adoram frequentar bons restaurantes, empórios e vinículas, mas não se sentiam bem em ir por conta do racismo já sofrido nesses locais, ou por serem muitas vezes os únicos negros a estarem nesses determinados espaços. Nesse encontro, elas saem em grupo para degustar, conhecer e estudar vinhos juntas, guiadas por Silvana Aluá.
“Sempre faço uma reserva com antecedência, mas a gente sempre causa um impacto ao chegar, muita gente para nos observar, assustam-se com a quantidade de pretos em restaurantes onde a maior parte dos clientes é branca, mas o que assusta mais são as apresentações e as histórias que divergem da norma: médicas, advogadas, mulher preta e sommelier assustam e eu me sinto muito orgulhosa disso”, conta Silvana.
Além disso, a confraria tem como objetivo mostrar que essa é sim uma bebida acessível que pode ser degustada por todos. Silvana complementa que “há muito tempo a gente achava que o vinho não era para a gente, por isso também que a Mônica é tão importante em nossos encontros, porque ela nos trouxe imagens e dados históricos que comprovam a origem do vinho e nos aproxima ainda mais da nossa cultura, respondeu a muitos questionamentos dos nossos integrantes”.
Mônica além de ser historiadora é amante dos vinhos há anos, nos trouxe diversas dicas para quem está conhecendo esse universo agora, a primeira delas é “Prove! Experimente todos os vinhos que você puder e entenda o que agrada o seu paladar, quais são os sabores que você conhece que já te agradam? Por exemplo, o amargo, tem gente que não suporta, tem gente que ama, e para os vinhos não é diferente, primeiro entenda o seu paladar e depois experimente e entenda o seu estado de espírito também; quando estou em um dia chuvoso, talvez triste, eu jamais abriria uma garrafa de espumante, por exemplo, mas um bom tinto, com uma uva mais encorpada, cairia bem”, explica.
“Ao passear pelo vinho você se conecta com a história. Um dia assistindo a um filme apareceu uma figura egípcia que me remeteu a maceração da uva e fiquei intrigada com aquilo, pesquisei mais a fundo e descobri que o vinho é africano; sabe-se disso há muitos anos e me questionei por que eu não tive acesso a essa informação antes, sempre me falaram que o vinho era europeu. Fui conversar com alguns conhecidos de vinícolas e a justificativa era de que a história do vinho começa a contar a partir da comercialização, ou seja, de onde convém. Na tumba de Tutankamon havia as ânforas com a data em que foram engarrafadas nome enólogo, que dizem ser uma profissão nova, já existia, e até então o comércio era realizado através do escambo e, mais uma vez, cai por terra essa história de querer embranquecer o vinho. Eu ainda falo vinho porque as pessoas não estão preparadas, mas o nome original é Irep”.