ONDE ESTÃO AS MULHERES NEGRAS?

Quando assistimos a um filme, além do lazer, estabelecemos uma forma de contato audiovisual e um vínculo emocional não apenas com paisagens diversas, mas também com as personagens projetadas na tela. Assim, o cinema pode ser visto como uma viagem de relações sociais entre pessoas, mediada por imagens. Nesse processo, através do nosso olhar, nossa visão de mundo vai sendo construída e muitos valores vão sendo assimilados.

O cinema brasileiro, após os anos 2000 – momento que se convencionou chamar de “pós-retomada” –, vem experimentando mudanças significativas, entre as quais podem ser destacados os avanços tecnológicos, a reafirmação do cinema “de gênero”, as aproximações com a televisão, a abertura para novos mercados audiovisuais, a convivência entre os filmes feitos quase artesanalmente e as produções de grandes orçamentos e equipe técnica especializada, além do aumento das coproduções internacionais. Por isso, como diz a estudiosa de mídias audiovisuais Miriam de Souza Rossini, o cinema brasileiro de hoje não é mais “o cinema da fome, do escracho ou da marginalidade”. Segundo a professora, diversas formas estético-narrativas passaram a ser reconhecidas pelo público, embora nem sempre pelos pesquisadores e críticos de cinema.

A ausência de negras nos filmes nacionais pode ser facilmente percebida por qualquer espectador atento. Essa baixa representação é demonstrada por pesquisas como “A cara do cinema nacional: perfil de gênero e cor dos atores, diretores e roteiristas dos filmes brasileiros (2002-2012)”, feita pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Para entender os números da pesquisa, é preciso ter em mente que, segundo dados oficiais do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, metade da população do Brasil se declara preta ou parda, e que chamamos de “negro” qualquer indivíduo gerado da junção dos dois grupos. De acordo com a pesquisa anteriormente citada, os filmes nacionais de maiores bilheterias exibidos entre 2002 e 2012 contavam, em seus elencos principais, com 14% de homens negros e 4% de mulheres negras. Ou seja, um percentual muito inferior ao das estatísticas do IBGE.

Considerando o cinema como um veículo dotado de grande poder de persuasão sobre o imaginário das pessoas, podemos referendar várias mulheres cineastas como exemplos de resistência, por colocarem em evidência, bem expostas na tela, personagens negras reais e individualizadas. Entre essas cineastas podem ser citadas Adélia Sampaio, Viviane Ferreira, Juliana Vicente, Sabrina Fidalgo, Edileuza Penha, Raquel Gerber, Larissa Fulana de Tal, Luciana Oliveira, Everlane Moraes, Yasmin Thayná, Renata Martins, Érica Sansil, Elen Linth, Lilian Sola Santiago, Carol Rodrigues, Joyce Prado, Carmem Luz, Gabriela Watson, Eliciana Nascimento, Janaína Refem, Thamires Santos, Débora Melo e tantas outras. Nesse aspecto, algumas questões merecem ocupar nosso pensamento e podem servir como guias numa busca pelo aprofundamento dessa discussão: Qual é o status quo dessas cineastas frente aos desafios estéticos do mercado cinematográfico? Como manter as discussões de empoderamento feminino negro na militância e concretizar a teoria nas telas ao realizar tais produções? Essa situação instiga mais algumas reflexões: onde estão então as diretoras e os diretores negros? As roteiristas e os roteiristas negros? Atrizes e atores negros? A resposta é: em sua grande maioria fora do cinema comercial, nas trincheiras do cinema independente.

Nessas trincheiras de resistência e criatividade vimos surgir, nos últimos anos, algumas iniciativas importantes, como o “Curta Afirmativo, do governo federal (edital que, desde 2012, financia filmes de curta duração dirigidos ou produzidos por jovens negros), e a criação do portal Afroflix, pela diretora negra Yasmin Thayná (uma plataforma que disponibiliza, pela internet, filmes produzidos, dirigidos, escritos e/ou protagonizados por pessoas negras). Esses projetos nos mostram que o aumento da representatividade  negra no cinema nacional passa, de maneira fundamental, por rearranjos na cadeia de financiamento e distribuição dos filmes. E nos lembram que em uma arte industrial e tecnológica como o cinema, a luta pela representação é, antes de tudo, um embate político e econômico. Até porque, sendo o cinema fruto do trabalho e das relações humanas em sociedade, devido às influências econômicas, históricas e estruturais, somente a formação de novas bases poderá alterar essas relações.

Então, nesse ponto, mais do que representação de mulheres e de homens negros no cinema, podemos falar da experiência negra nos filmes – ou seja, da presença dos negros diante e por trás das câmeras – não como um fato raro, mas como algo comum. Ao chegarmos a esse ponto, teremos o renascimento de uma forma artística. Em janeiro de 2016, a Secretaria do Audiovisual lançou o “Longa Afirmativo”, edital que destinou cerca de R$ 3,7 milhões a três longas-metragens dirigidos por cineastas negros. A Agência Nacional do Cinema (Ancine) ressalta que, em 2013, foi publicado o “Edital Carmen Santos”, que destinou R$ 990 mil a dez curtas e seis médias-metragens dirigidos por mulheres ou com temática feminina.

Assim, algumas ações afirmativas vêm se comprometendo com uma mudança de panorama nos últimos anos, o que é potencializado pelos discursos de personalidades proeminentes, como Lázaro Ramos e Taís Araújo, que trabalham dentro da indústria televisiva promovendo a identidade negra como um valor positivo, e não mais como um motivo de vergonha. Mulheres negras e o setor audiovisual: é possível ampliar sua visibilidade? Nos Estados Unidos, muitos seriados de sucesso se basearam na realidade dos negros periféricos e em ascensão. Essa possibilidade já foi considerada pelos países europeus: é indispensável que se questione, sem que haja qualquer esforço ou grande estranhamento, por que as produções audiovisuais brasileiras são, em sua esmagadora maioria, protagonizadas, compostas, dirigidas e produzidas por atores, diretores e produtores brancos? Mary Jane é uma mulher negra bem-sucedida em Atlanta – a quarta cidade com a maior população de negros dos Estados Unidos – e trabalha como apresentadora de um telejornal. Rica e famosa, desfruta do melhor que a cidade oferece. Temos Viola Davis, protagonista da badaladíssima “How to Get Away with Murder” (literalmente, “Como se Livrar de um Assassinato”), exibida no Brasil pela Rede Globo com o bizarro título de “Lições de um Crime”. Na série, a atriz interpreta a advogada criminalista e professora universitária Annalise DeWitt, com uma carreira muito bem-sucedida e grande prestígio.

Exemplos como estes ainda são raros na TV e no cinema brasileiros. Pessoas negras, sobretudo mulheres, ainda são retratadas em posições e profissões de pouco prestígio social – quando sequer são retratadas. Por aqui, cinema é entendido como um meio que tem servido a um discurso de opressão, já que torna invisível a mulher negra. Este é um reflexo muito nítido de uma sociedade ainda extremamente racista e preconceituosa. Porém, esse quadro pode ser mudado – assim como a própria sociedade – com a promoção da representatividade e a valorização da imagem negra. A objetificação histórica imposta às mulheres negras pelo patriarcado subjuga a nossa capacidade política e social de intervir na sociedade.

No que diz respeito ao setor audiovisual, a história é, em grande parte, a da luta constante para manter ocultos os aspectos artificiais do cinema e para sustentar a impressão de realidade. Entretanto, o cinema, como qualquer produto da indústria cultural, também representa um campo de luta; e a história do cinema atesta o esforço constante para denunciar esse ocultamento. Como se vê, quando se considera a ausência de mulheres negras em filmes nacionais, bem como os significados dessa “invisibilidade”, nota-se que ainda são muitos os desafios propostos nesse campo. O que nos cabe é compreendê-los, enfrentá-los e superá-los.

Comentários

Comentários

About Author /

Start typing and press Enter to search

Open chat
Preciso de Ajuda
Olá 👋
Podemos te ajudar?