Para transformar o invisível
Por: Túlio Custódio
Perfilando acadêmicos negros
tema da invisibilidade do pensamento e de intelectuais negros tem sido foco de alguns esforços teóricos e políticos por parte de diversos setores do movimento negro, bem como de pesquisadores. Parte desse esforço busca trazer visibilidade as trajetórias e reflexões sobre grandes intelectuais da nossa história, desde Luiz Gama, Lima Barreto, passando por José Correia Leite, Abdias do Nascimento, Ironides Rodrigues, Virginia Bicudo, Carolina Maria de Jesus, Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Ney Lopes e Oswaldo Camargo, entre outros. nos últimos anos, com o aumento da chegada de negros e negras no ensino superior com as ações afirmativas, devemos ver um aumento dessa produção.
O fato é que trazer a memória e o legado desses intelectuais, que atuaram nos mais diversos campos como política, literatura, filosofia, teatro, artes entre outros, é uma forma de subverter o que Abdias do Nascimento consagrou em seu pensamento como processo de genocídio do negro brasileiro. O genocídio histórico que ocorre aqui, organizado pela supremacia branca e seus modelos de racismo, manifesta-se tanto pela aniquilação física dos corpos negros (e conhecemos as estatísticas de homicídio dos jovens negros pelas periferias do país) como pela invisibilização de sua cultura e legado. Nesse sentido, demarcar a existência e legado desses intelectuais negros é fundamental para estabelecer sua contribuição para a sociedade e cultura brasileiras.
Entre as tabelas produzidas no artigo, há uma que chama muita atenção: lista com autores mais citados no debate de relações raciais (em pelo menos 9 ou mais artigos nas revistas verificadas), ou seja, uma lista com autores que mais impactaram a discussão e o pensamento em nível científico no Brasil nos últimos vinte anos. O que chama atenção especialmente é que na lista, que contém cerca de 90 pesquisadores e intelectuais, referências atuais bem como históricas e icônicas, o primeiro nome de um pesquisador negro aparece apenas na 22ª posição, e não é de um pesquisador brasileiro e sim do britânico Stuart Hall, seguido de outras 2 referências internacionais, Paul Gilroy (25ª) e Michael Hanchard (29ª). Brasileiro aparece apenas na 34ª posição, sendo a figura de Abdias do Nascimento (citado em 15 artigos). Outros nomes, como Guerreiro Ramos (76ª), e Clóvis Moura (79ª) vão aparecer quase no final da lista (todos citados no domínio dos 9 artigos).
Resgatando a pergunta da pesquisadora Viviane Araújo, “quem fez esse debate?”, não apenas pelas pessoas sentadas nas cadeiras das universidades, mas também pelas referências mobilizadas para pensar a questão racial no Brasil, percebemos que a ausência negra é gritante, estarrecedora. Nesse sentido, para contribuirmos para visibilidade de intelectuais negros, e para aumentar a referência, ao invés de seguirmos na crítica da ausência negra, preferimos trazer aqui alguns perfis de acadêmicos negros brasileiros atuando no país. São pesquisadores e acadêmicos, sentados em universidades federais e estaduais de prestígio, e cada um em sua área pode contribuir para visibilidade do pensamento negro, seja pelo tema ou na sua própria existência. Para cada um deles, a fim de conhecê-los melhor, perguntamos sobre área de atuação e sua visão sobre experiência na academia.
Uirá Garcia
“Sou Antropólogo, formado em Ciências Sociais com mestrado e doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e com um estágio de pós-doutorado na UNICAMP. Minha formação é Etnologia Americanista, com especialidade em relações humano-animais, Ecologia Indígena e estudos sobre caça na Amazônia Indígena. Trabalho há 11 anos com um povo indígena que vive no Maranhão (próximo à divisa com o estado do Pará), os “Guajá”. Atualmente estou terminando uma pesquisa de 2 anos e meio apoiada pela FAPESP, onde me voltei para questões mais teóricas sobre a etnografia amazônica, em particular a ideia de “Contato” (que é um tema importante na minha área) e estou iniciando uma nova pesquisa, começando um estudo etnoprimatológico de uma espécie de macaco Bugio, conhecido em boa parte da Amazônia indígena como “Capelão” (Alouatta belzebul). Sou professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP),e membro do Núcleo de Antropologia Simétrica do Museu Nacional/UFRJ, e do Centro de Estudos Ameríndios, da USP.”
Flávia Rios
“Meu campo de pesquisa é a Sociologia e pesquiso movimentos sociais e relações raciais e de gênero no Brasil. Meu atual foco de pesquisa são as novas gerações de ativismo, com destaque para as suas formas de atuação no espaço público.”
Edilza Sotero
“Ao longo de minha formação, atuei no campo das relações raciais, desenvolvendo pesquisas com foco em diferentes objetos. Minhas preocupações estavam mais consistentemente associadas a questões relacionadas à trajetória de estudantes negros e à atuação de ativistas nos movimentos negros. Nos últimos dois anos meu campo de atuação se moveu em direção a uma perspectiva interseccional, com destaque para a investigação da articulação entre opressões de raça, classe e gênero. Os meus objetos de pesquisa nesse período refletem as mudanças na minha perspectiva teórica. Por exemplo, no doutorado, estudei tentativas de inserção de negros ativistas na política partidária no pós Estado Novo. Pouco tempo depois, quando realizei minha pesquisa pós-doutoral, resolvi investigar especificamente a atuação de mulheres negras no mesmo período, tentando compreender tanto como se dava o protagonismo dessas mulheres quanto o processo de apagamento de suas trajetórias na história do movimento negro brasileiro.”
Mário Augusto Medeiros da Silva
“Sou formado em Ciências Sociais e me especializei na área da Sociologia. Neste âmbito, pesquiso na área do Pensamento Social Brasileiro (estudos de processos sociais, história brasileira, história da sociologia). Eu me dedico ao estudo de intelectuais e associações negros, particularmente no século XX, ao estudo de processos sociais em que seja possível entender o protagonismo negro, o racismo, a discriminação e a luta antirracista. Ultimamente tenho pesquisado o tema do associativismo político e intelectual negro em São Paulo e a circulação social de ideias.”
Flavio Ribeiro Francisco
“O meu campo de pesquisa é o da Diáspora Negra, com destaque para a circulação transnacional de intelectuais nas Américas. Nesse sentido, mantenho diálogo com pesquisadores das experiências negras da Diáspora e com historiadores que estudam a sociedade estadunidense.”
Janaína Damasceno
“Sou graduada em Filosofia pela UNICAMP e Doutora em Antropologia pela USP. Atuo como professora de Teorias da Cultura na Faculdade de Educação da Baixada Fluminense/ UERJ, em Duque de Caxias. Meu campo de pesquisa incide sobre Cultura Visual e Produção Intelectual na Afrodiáspora. Coordeno um grupo com este nome, o “Afrodiásporas: Núcleo de Pesquisas sobre Cultura Negra, Visualidades e Educação/ Promovide”. Além de um trabalho sobre o pensamento da socióloga e psicanalista Virgínia Leone Bicudo, que foi o meu foco no doutorado, tenho agora uma pesquisa sobre os arquivos visuais da luta antirracista no Brasil, nos Estados Unidos e na África do Sul. Tenho começado a escrever sobre isso agora. Acredito que numa sociedade centrada nas imagens, a falta de difusão massiva da imagem da luta negra no Brasil, de ícones da luta negra, acaba construindo uma narrativa de que a luta antirracista não aconteceu,diferentemente dos Estados Unidos e da África do Sul. Quase todo mundo conhece o rosto de pessoas como Mandela e Martin Luther King, mas poucos conhecem o rosto de Abdias, Lélia, Beatriz. Numa sociedade centrada em imagens, não ter massivamente representados estes ícones é como apagar a luta e matar os seus ícones. Com os meus alunos na FEBF desenvolvemos um projeto chamado “Memórias Afetivas da Baixada Fluminense”, que resgata as primeiras fotografias de família que eles encontram em suas casas. Este é um trabalho bem bonito. Como grande parte dos moradores da Baixada é negra, estamos formando um grande arquivo de imagens de família que falam sobre imigração, infância, histórias de amor, ingresso no mercado de trabalho, sororidade etc., entre pessoas negras.”