Paula Lima : duas décadas de pura black music

Por : Maurício Pestana

Batemos um papo sincero com a cantora Paula Lima. A cantora nos contou detalhes sobre sua intimidade, falou sobre o início da carreira, suas referências, família, mostrou seu posicionamento frente à crise sanitária e contou seus planos para o futuro.

Retrospectiva


Bom, eu sempre gostei de cantar, né? Desde pequena estudei piano erudito, aos sete anos minha mãe perguntou: “qual instrumento você gostaria de tocar?” E aí ela disse: “Depois de três anos de estudo eu vou comprar um piano para você”.

E aí comprou um piano e eu estudando. Eu sou uma super pianista? Não. Mas eu acho que isso fez com que eu me sentisse à vontade dentro dessa atmosfera da música, a música não ficou inacessível, era uma coisa que eu mexia nela, né, diariamente. Também minha mãe conta que aos três anos de idade eu já acordava cantando no berço, meu pai era super musical e eu, quando entrei na faculdade de Direito, no Mackenzie, conheci, não lá, mas nessa época, um grupo de músicos comandados pelo Eugênio Lima, que não é meu primo, mas é um cara que foi super importante na minha vida. Ele foi quem me deu a minha primeira oportunidade, eu falava para todo mundo que eu gostava de cantar e inclusive quando a minha avó me via cantando ao invés de estudar, ela falava para mim: “olha a cigarra, hein” e isso também fez com que eu me sentisse responsável pelo meu futuro.

Eu entrei na faculdade de publicidade primeiro, fiz um ano e depois entrei na faculdade de Direito, porque eu queria muito ser independente financeiramente, eu queria muito ser dona do meu nariz e poder me divertir e não só ficar sobrevivendo, eu queria viver mais plenamente. E quando eu entrei no Mackenzie, que eu falei do Eugênio Lima, ele tinha uma banda que se chamava Unidade Móvel. Comecei a fazer parte dessa banda, depois o Escova me viu na Unidade Móvel e o Escova, um cara super importante para a música negra no Brasil, chamou-me para fazer parte do Grêmio Recreativo dos Amigos do Samba Rock Funk Soul e foi uma delícia. O Thaíde e DJ Hum me viram com o Escova e o Beat também, e nisso me chamaram para gravar o disco deles; eu gravei “Senhor Tempo Bom”, que foi um acontecimento e o Beat me chamou para fazer parte do Zambasters que depois se transformou na banda Funk Como Le Gusta; então, essa é a minha trajetória.

No final de 98, o Bernardo Vilhena fundou uma gravadora e me chamou para fazer o meu primeiro disco solo e o meu primeiro disco solo saiu em 2001. Foi um marco para mim e acho que para a música negra também, porque ele entrou em todos os setores, ele tinha o samba rock, tinha o groove, ele tinha tudo o que a gente gosta, né, e a divulgação também foi muito boa, então começou a tocar em rádio, tinha posters na Avenida Paulista (São Paulo), foi um sucesso. Foi quando eu falei: “Caramba, eu sou uma cantora, essa é a minha profissão, não tem mais volta! Eu tô construindo uma coisa que me dá prazer e em que eu acredito muito e as pessoas abraçaram”. Daí eu dou início à minha carreira solo, o segundo foi o “Paula Lima” na Universal, depois foi o “Sinceramente”, que quem deu o nome para mim foi o Zeca Baleiro, que foi pela End Records, depois eu fiz um independente que se chamava “Outro esquema” e depois fiz o projeto “O Samba é do Bem”, que concorreu ao Grammy Latino.

A identidade e autenticidade do seu trabalho traz desde sempre uma busca sua ou veio a partir dessas influências e seu berço musical?

Eu acho que a gente na vida é um reflexo daquilo que a gente vive; eu não posso pontuar exatamente quando aconteceram as mudanças, como foi o desenvolvimento e a evolução, mas eu sei que tudo o que eu vi e que eu vivi fez com que eu seja quem eu sou. Por exemplo, eu lembro que com cinco anos de idade, eu vi o Simonal cantando com a Sarah Vaughan na televisão e eu não me esqueço disso; depois eu lembro de com uns nove anos de idade eu ver o Emílio Santiago e querer casar com ele (risos), eu me lembro de falar: “vó, quero me casar com ele, mas ele fala diferente” e aí ela falou: “ah, porque ele é especial” e aí foi muito legal, porque a forma como as coisas chegaram para mim foi tudo de uma maneira muito natural, muito livre, muito tipo “tá tudo bem, o mundo é assim…”.

E aí depois eu me lembro de quando descobri o Michael Jackson e depois eu voltei para trás e descobri o Jackson’s Five. Depois tinha um programa o Som dos Bailes, e lá eu descobri um universo inteiro, descobri Trio Mocotó, Jorge Ben, Stylistics, Dionne Warwick, descobri um universo inteiro e aquilo mexia comigo, até porque eu sempre estudei em escola particular. Se hoje já é difícil ter negros em escolas particulares, imagina naquela época, eu era a única dos 800 alunos e obviamente o tipo de música que eles ouviam e que tocava não batia. Eu lembro que eu ia nas festinhas e eu ficava sentada, achando tudo chato, porque era muito rock, não que eu ache que rock seja chato, mas não é para mim e aí de repente eu tinha aquele meu universo muito louco e eu passava as tardes gravando em fita cassete tudo aquilo. Eu acho que aquilo me moldou muito e depois, mais tarde, quando eu descobri o Eugênio e ele já tinha uma mistura de jazz com Hip-Hop e aquilo também tinha tudo a ver comigo e aí depois descobri Racionais MC’s e aí me aprofundei.

Eu concordo com você, o meu mergulho é muito profundo, é uma coisa muito verdadeira, eu não consigo fazer outra coisa a não ser isso. Às vezes, as pessoas falam: “ah, por que você não canta tal coisa?”. Eu falo: “gente, eu preciso ter prazer. A arte é muito sagrada, muito especial, se eu escolhi isso para viver, eu não posso ter o sentimento como se eu fosse bater ponto no emprego; essa minha verdade, vai ser a verdade pro outro e isso vai me trazer felicidade e eu acho que eu tenho a missão de ser feliz”. Elza Soares, Alcione, a própria Sandra Sá quando ela chegou com “Olhos Coloridos”, eu fiquei muito impressionada.

Esse estilo, Paula Lima, como você trabalhou isso?

É difícil você viver num país onde na verdade a música negra era muito mal-entendida ou ela não existia. Antes de mim tinha a Black Rio, o Dom Salvador, o Dafé, o Hyldon, talvez realmente fosse marginalizado, você tem razão, o Luiz Melodia se encaixava exatamente nessa época, tanto que ele fez parte do movimento Black Rio, mas eu acho que ainda parecia uma coisa de gueto. Se você fosse pra Madureira, pra periferia, se você fosse pro povo Black, você ouviria isso e aí se fosse pular esse muro era mais difícil, mas eu acho que a gente teve o Tim Maia que rompeu as barreiras e ele fazia naturalmente uma coisa black e comercial, já o Luiz Melodia eu sinto que ele não queria, ele queria fazer outra coisa, tipo “e daí se você não entende nada, sabe? É o que eu quero cantar, é o que me dá prazer”, muito livre, sabe, e era dele, assim como o Tim Maia era o Tim Maia e fazia exatamente o que ele queria, mas ele buscava o comercial, mas acho que também tinha um link consciente/ inconsciente como o Roberto Carlos, ele vivia competindo com o Roberto Carlos, né, que não tinha nada a ver, o próprio Erasmo, eles cresceram juntos. Eu acho que o Tim tinha uma cabeça diferente, o próprio Jorge tinha uma cabeça diferente, ele fazia um Samba Rock, mas tinha uma coisa comercial e era dele, o Hyldon, Dafé, Luiz Melodia, vai para um outro lugar e eu, eu acho que eu fico nos dois mundos. Agora pensando nisso, eu fico assim, porque é legal todo mundo gostar da sua música, é legal você chegar para todo mundo. Eu vou dizer que eu não penso nisso? Claro que eu penso, comercialmente, mas eu não vou fazer algo que eu não goste.

Eu acho que é do meu gosto, do meu feeling, eu não fico estudando como fazer isso. Então, por exemplo, eu ouvia a dona Ivone Lara, mas eu também ouvia Michael Jackson, no mesmo patamar, talvez um pouco mais Michael Jackson. Eu ouvia Tom Jobim e ouvia Chaka Khan e para mim eles estavam no mesmo caldeirão. Quando eu vou perfomar, criar, pensar numa música, em tudo isso junto, não tem jeito, tem Earth, Whind & Fire, agora tem anderson pack que eu penso direto nele.

E tem essa força aí, uma energia do palco que é só sua…

É, essa eu também não sei, às vezes as pessoas que me conhecem mais intimamente falam assim: eu tô numa festa, eu tô quieta, tô bem normal, né, eu sou gente rsrs, bem normal… e aí alguém fala: “dá um microfone pra ela”, porque aquilo me dá uma vontade de ultrapassar todas as barreiras possíveis. Eu sempre dou o meu melhor, é sempre um acontecimento, eu gosto de estar com os músicos e eu gosto de cantar, eu adoro cantar, eu gosto de estender a nota, eu gosto do público, eu gosto quando eles gostam do que eu tô fazendo e aí rola depois uma adrenalina de horas, eu reverberando aquele show, aquele encontro, é um dos maiores prazeres que eu tenho na vida. Mais do que estar no estúdio.

E como tem sido esse um ano e meio longe dos palcos por causa da pandemia?

Olha, tem sido bizarro, né, eu acho que é bizarro, é surreal, é inesperado, é surpreendente, é uma tragédia o que a gente está vivendo, mas eu sempre penso que todo mundo está vivendo a mesma coisa que eu, então não adianta bater a cabeça na parede. Aconteceu e eu acho que a gente está esperando desacontecer, e eu sempre tive um lado corporativo muito forte, então eu não parei totalmente, sempre tem as lives para as marcas, mas tá longe de ser a mesma coisa do encontro, da felicidade e tal… E é desanimador também porque, claro, rola uma insegurança sobre o futuro e uma vontade de ficar um pouco quieto porque a criação e a inspiração, também ficam comprometidas, né. Porque hoje é tudo muito efêmero, você lança uma coisa e semana que vem está velho. Às vezes, eu vou no Instagram e falo: “caramba, eu quero postar isso aqui”. Se eu não postar em três horas, ficou velha a notícia.

Por exemplo, a Rebeca Andrade ganhou a medalha, eu demorei 6 horas para postar e ficou velha a notícia. Eu acho tudo muito injusto porque as coisas continuam acontecendo e o tempo real das coisas continua sendo real, mas o tempo de internet é uma coisa a que a gente tá muito ligado e outra coisa streaming e música também. Mas, ao mesmo tempo, a realidade é essa, então a gente vai ter que conviver com isso e fazer desse jeito, mas a pandemia estava difícil porque você ter que ficar dentro de casa, não poder ver as pessoas, você passará a ter uma rotina interna é muito desagradável, a gente fica muito entediado e não é nem porque não tem coisa pra fazer, porque tem, tudo o que você não fez enquanto você estava correndo, que seja arrumar o armário, botar as contas em ordem, criar as músicas… Tem tudo isso para fazer, mas está no tédio. E eu estava achando que tudo isso era a pior coisa do mundo, mas a pior coisa pra mim foi a morte do Ronaldo (marido da cantora), que aconteceu agora em maio, então a pandemia ficou pequena pra mim, os outros problemas ficaram minúsculos. Eu penso sempre: a única coisa que eu queria era que ele estivesse aqui.

Ele tinha uma presença muito forte na minha vida, também cuidava da minha carreira, cuidava da minha família, cuidava de mim, ele me motivava. O Ronaldo, dentro de casa, cuidava da força, do sorriso, do astral, da vibração e isso eu não tenho mais, eu não tenho mais o meu melhor amigo, a pessoa mais importante da minha vida não está mais aqui, para mim tudo ficou pequeno, sabe? Eu cuidava dos meus pais que estão numa clínica e eu achava aquilo tão pesado, e hoje é tudo tão pequeno, tudo é nada. Eu vejo a vida agora de outra forma, eu quero muito viver ainda mais e viver muito mais plenamente, porque eu vejo o tempo que a gente perdeu sem viajar, pensando sempre no trabalho, sem flexibilizar…

O que você acha que pode tirar de aprendizado desse período que estamos passando?

Eu acho que é melhor a gente tentar sempre extrair o melhor da gente mesmo, sabe, no sentido de ter mais empatia, de ser mais solidário, de ser mais parceiro, de ser mais amigo, eu sinto que isso se perdeu. Antes da pandemia, a gente já não estava vivendo assim. Óbvio que a fomos sempre em processo de evolução, mas eu acho que a gente foi deixando de lado as coisas que realmente importam e eu acho que a partir dessa pandemia, a partir destes últimos acontecimentos, nossa política é pior do que o vírus, porque é angustiante. Todos os dias a gente sofre muito e eu já fiquei muito angustiada, preocupada, pensando: o que será de nós? Qual vai ser esse nosso futuro com essas cabeças, com essas pessoas à frente, sabe? É muito assustador. E as pessoas se revelam. Algumas se revelaram incríveis e, obviamente, eu tive inúmeras surpresas incríveis de pessoas que eu nem imaginava, que me deram um carinho especial, uma atenção especial, uma presença. Mas justamente por conta da pandemia, algumas pessoas se revelaram estranhas, pessoas próximas até, pessoas com quem eu tinha intimidade, muita coisa mudou.

“Acho que o básico hoje é você respeitar o outro.”

O que você diria para as meninas jovens que sonham em ser artistas?

Acho que em primeiro lugar é entender que provavelmente vai ter um sacrifício, nada vai ser de mão beijada, ninguém vai dar de presente nada para a gente; o nosso sonho depende exclusivamente da gente, daquilo em que a gente acredita, o tanto que a gente batalha e o tanto que a gente tá disposto a sacrificar para conseguir. Eu, por exemplo, sou um exemplo típico de uma pessoa que acreditou no sonho, porque eu não tinha padrinho, eu não tinha dinheiro, eu não tinha gravadora, eu tive inclusive um super não inicial, triste, que foi quando uma gravadora ia me contratar e aí o  produtor que estava bombando na época falou assim: “olha, eu acho melhor não contratar a Paula não, ela é ótima, mas como é que a gente vai colocar duas cantoras ao mesmo tempo no mercado? O brasileiro vai aceitar isso? Duas cantoras negras!” Não podia! E mais um detalhe, no meu tempo não existia Rihanna ou Beyoncé, só existia o Michael Jackson, então como as pessoas querem te colocar em caixinhas, qual caixinha me encaixava? As pessoas falavam tipo: “ah ela é o Jorge Ben de Saia”, que pra mim é um orgulho, tudo bem, mas eu quero dizer que nem tudo vai estar moldado e pronto para a gente. Hoje, como você disse, nós construímos pontes e nós temos a imaginação ousada, maravilhosa, destemida, nós somos um exército e o lance da internet juntou ainda mais essas cabeças pensantes; então, o que eu posso dizer sobre mim? Valeu a pena todo o meu esforço, valeu a pena eu não ligar para esse “não” e continuar construindo a minha história. Toda história depende de construção!

De onde vem essa força que você carrega para os palcos e na vida?

Eu acho que vem dessa missão do tipo, “eu preciso ser feliz”, começando daí. E também dessa gratidão que eu tenho, de ser uma mulher, negra, em um Brasil louquíssimo, ultra racista, com pensamento escravocrata e eu vivo daquilo que eu gosto, isso é um presente de Deus. E eu sempre penso muito na minha família, partindo do meu avô e da minha avó. Minha avó me amava muito, minha mãe era uma mulher fortíssima, talvez tenha muito a ver com ela e com meu avô que eram pessoas à frente do tempo deles e eu morro de orgulho da minha madrinha e do meu padrinho, que foram os primeiros formandos da família e eles eram muito firmes e eu fui aprendendo coisas com eles que eu me sinto muito privilegiada, por ter nascido onde eu nasci, com a família que eu tenho, principalmente com meus antepassados, a minha mãe é uma professora aposentada e eu aprendi a dirigir com ela, não foi com meu pai. Meu pai, sempre muito presente, muito calmo, sereno e minha mãe uma fortaleza, minha mãe era um foguete, eu não tenho metade da força dela. Eu lembro que, às vezes, quando eu estava meio baqueada, alguma coisa que não deu certo, principalmente antes do show, minha mãe sempre me levantava, teve um episódio que esgotaram todos os ingressos e eles só abriram um lado do teatro e não abriram o outro, eu entrei e fiquei meio triste com aquilo. No final da primeira parte a minha mãe veio e perguntou: “o que que aconteceu?”. Eu expliquei e ela, que falou: Paulinha, pisa firme, nada vai te derrubar, segue firme, dê passo largo, você tem que ser forte. E ela não pensava que eu tinha que ser porque eu sou uma mulher negra, porque a mãe dela era branca e não passou isso pra ela, então ela nunca ficou assim: “nós negros…” ela tinha um negócio, todo negro tem que estudar mais que o branco, senão você não vai ter oportunidade, você tem que estudar inglês, estudar piano… Mas ela não ficava batendo nessa tecla o tempo inteiro. A partir desse dia, toda vez, antes de entrar no palco, eu me lembro dela e das coisas que ela me disse naquele dia e em tantas outras conversas. Essa força vem dela, mas ela é bem mais forte que eu.

Atualmente…

Hoje eu sou uma das diretoras da União Brasileira dos Compositores, a UBC Música. Lá eu entrevisto alguns artistas associados, dentre eles eu já entrevistei Margareth Menezes, Marina Lima e muita gente bacana. Agora eu vou entrevistar a Alice Sofia; é uma vibe muito bacana. Eu também tenho um programa de rádio há uns 10 anos, na rádio Eldorado FM, e a gente já ganhou o APCA, pra mim é um motivo de muito orgulho. Ele vai ao ar todas as terças às 20h e aos domingos, às 19h. Eu sou colunista também do site RG e agora eu estou focada neste novo single que eu quero lançar ainda este ano. E para o ano que vem, um disco praticamente de inéditas.

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