Falar sobre cinema negro no Brasil é, antes de tudo, escancarar uma ferida: a de um país que ainda limita, silencia e tenta capturar a existência negra mesmo nos espaços que deveriam nos libertar — como o da arte. Em pleno 2025, seguimos enfrentando o paradoxo de sermos maioria na população e minoria nas narrativas que circulam, emocionam e moldam o imaginário nacional.
A presença de pessoas negras nas telas, atrás das câmeras e nas decisões do audiovisual não pode ser reduzida a uma pauta de “representatividade”. Vai muito além disso. É sobre humanidade. É sobre nos vermos como sujeitos plenos, complexos, criadores. É sobre romper com um sistema que, por muito tempo, nos confinou a estereótipos, caricaturas ou à completa ausência.
Mesmo com avanços recentes, o cinema brasileiro ainda é profundamente atravessado por um modelo de produção excludente, onde o “universal” continua sendo branco, cis, masculino e burguês. E quando corpos negros ocupam a cena, muitas vezes somos usados como produto, como isca, sem que isso se reflita em poder real, autoria ou remuneração justa. A pergunta que não cala é: quem lucra com as narrativas negras hoje? E, mais importante, quem as controla?
A mostra Intérprete do Brasil, em homenagem a Grande Otelo, por exemplo, nos faz lembrar que resistir também tem um custo. Otelo foi gênio, presença viva e rasgo simbólico num cinema que queria engessá-lo. Mas quantos artistas negros ainda adoecem tentando existir dentro de uma indústria que nos empurra para os cantos? Que ainda nos nega o direito de apenas criar?
O surgimento do que se chama de QuilomboCinema, uma rede de cineastas, curadoras e pesquisadores negros que estão ocupando espaços de decisão, é um sopro de futuro. Mas não sem esforço. Cada filme, cada edital, cada mostra conquistada é fruto de muita luta — e cansaço. Porque a descaptura exige muito mais de quem nunca teve o privilégio de apenas “fazer cinema”. Fazer cinema negro no Brasil ainda é, em muitos casos, lutar para continuar de pé.
O cinema negro é cinema brasileiro, sim. É ele quem mostra o que o país tenta apagar. É ele que reinventa os modos de contar, que propõe novas estéticas, novas narrativas, novas formas de amar e resistir. Porque no fundo, é isso: fazer cinema negro é um ato de amor — por nós, pelos nossos, pelas histórias que ninguém mais vai contar se a gente não insistir em existir.