Essa pergunta aparece por aí com a maior naturalidade, como se fosse quase uma lei da gravidade: jogador negro, quando fica famoso, “só quer saber de mulher branca”. Confesso que já me peguei pensando nisso também, com uma pontinha de frustração, como quem observa um padrão repetido à exaustão nas fotos, nas festas e nas capas de revista. A pergunta provoca, cutuca, incomoda. Só que, como quase tudo que envolve raça, pertencimento e afeto nesta nossa sociedade atravessada pelo racismo, a resposta está longe de ser simples.
Na verdade, não é bem assim. Para cada dez jogadores negros que aparecem publicamente com uma mulher branca, existe um Mario Lemina da vida. O meio-campista gabonês, que brilhou em clubes como Galatasaray e Wolverhampton, vive um relacionamento com Michèle Costa, uma mulher negra, com quem constrói família, afeto e imagem pública. Há muitos outros exemplos como ele, embora pareçam menos visíveis aos nossos olhos. E aí já começa o primeiro ponto: o que é mostrado e celebrado é diferente do que existe.
O problema talvez não esteja nos olhos desses atletas, mas nos filtros da sociedade. Filtros que definem o que é desejável, o que é sinal de ascensão, o que é “par ideal”, o que cabe no sonho de sucesso. Filtros que podemos chamar, com todas as letras, de racismo estrutural.
Desde crianças, homens negros são ensinados que o auge da validação está em alcançar tudo aquilo que historicamente lhes foi negado: riqueza, status e, muitas vezes, o amor da mulher que simboliza esse status, a mulher branca. O mercado afetivo brasileiro funciona com a mesma lógica de desigualdade que opera no mercado de trabalho: quanto mais branca a pele, maior o “valor” atribuído. Machuca perceber isso, porém é impossível falar de amor sem entender as dores sociais que moldam nossos desejos.
Mulheres negras, por outro lado, sempre estiveram associadas à luta, à resistência, ao “dar conta de tudo”. São fortes demais aos olhos do mundo, delicadas de menos aos critérios construídos pela branquitude. E vão ficando no final da fila do afeto, não por falta de beleza, mas por excesso de racismo nas escolhas de quem olha.
Quando um atleta negro ganha fama, seu corpo vira símbolo. Seu sucesso, troféu social. Seus relacionamentos, justificativa para algumas pessoas dizerem que “ele se superou”. E é aí que os julgamentos aparecem: de um lado, quem o acusa de apagar suas raízes; de outro, quem o coloca num pedestal justamente por ele rejeitar aquilo que é visto como inferior. Nem um extremo nem outro fazem justiça à realidade, porque ninguém deveria ser punido ou premiado por amar alguém.
O que precisamos mesmo é entender a engrenagem. Jogadores negros não são daltônicos. Eles veem, sentem e escolhem. Só que fazem isso dentro de uma sociedade que hierarquiza afetos. E se a sociedade premia a escolha pela branquitude, não é surpresa que muitos sigam esse caminho. Ao mesmo tempo, não podemos invisibilizar os Leminas e tantos outros que constroem suas vidas com mulheres negras, porque eles existem e resistem a esse roteiro pronto.
No fim das contas, aquilo que parece pessoal é político até o último fio de cabelo crespo. Relações afetivas também são atravessadas pela construção de mundo em que vivemos. Quando um homem negro escolhe amar uma mulher negra publicamente, está também reafirmando que ela é digna de ser celebrada, desejada e posta no centro da história, e não à margem.
Essa publicação é fruto de uma parceria especial entre a Revista Raça Brasil e o Fórum Brasil Diverso, evento realizado pela Revista Raça Brasil nos dias 10 e 11 de novembro, que celebra a diversidade, a cultura e a potência da música negra brasileira. Não perca a oportunidade de participar desse encontro transformador — inscreva-se já www.forumbrasildiverso.org






