Por trás das ofensas: uma viagem necessária 

Ofensas dificilmente convencem, mas a gente insiste nelas assim mesmo. O que fazer? O trânsito nosso de cada dia, com suas idas-vindas-anda-e-para, resume um pouco da nossa condição civilizatória. Nas diversas áreas da vida, buscando os nossos objetivos, geralmente avançamos um pouquinho, paramos por um tempo maior do que gostaríamos, marchamos mais um tanto e… ops! Uma fechada (leia-se atitude) de alguém atravessa o nosso caminho e, não raro, entramos no conflito desprevenidos, sem a proteção do autocuidado nem da empatia. 

Se mesmo após a discussão pródiga em xingamentos ambos saírem com vida, ainda resta o risco de hematomas físicos ou até feridas emocionais dolorosas e difíceis de cicatrizar. A complexidade aumenta quando o entrevero acontece entre gente do mesmo sangue, cujo vínculo e proximidade são constantes. 

O que escolhemos propor aqui é uma alternativa a essa nossa cultura da ofensa e da desqualificação do outro como forma de argumento. Por isso, afirmamos: rótulos como teimoso, exagerado, burro, louco, desroganizado, dentre tantos outros, não nos ajudam a criar conexões e acordos viáveis. 

Marshall Rosenberg, o propositor da Comunicação Não Violenta (CNV), considerou que julgar é um jeito trágico de criar profecias autorrealizáveis. Pois esculhambar pessoas pode despertar desconexão, raiva e frustração, ingredientes capazes de gerar atitudes que reforçam a imagem de inimigo, o conhecido nós contra eles. Quem traduziu isso de uma forma bem nítida para mim foram o Ike Lasater e a Julie Stiles no livro Comunicação Não Violenta no Trabalho (editora Colibri). Lá diz assim: 

“Formo uma imagem de inimigo quando faço um julgamento, diagnóstico ou análise de outra pessoa ou de mim mesmo na forma de um pensamento em minha mente. (…) Assim, nossos pensamentos afetam nosso estado emocional, que, por sua vez, afeta nossas microexpressões, o ritmo da nossa fala, as palavras que escolhemos e a energia com a qual as transmitimos”. Em suma, entre numa reunião pensando que está cercado de tiranos e a sua crença potencialmente norteará suas ações. Diante disso, os outros, ainda que inconscientemente, perceberão a afronta e poderão escolher tragicamente responder de um jeito que fortaleça sua convicção.  

Outra obra que ilumina essa questão e atende minha necessidade de sentido é Por Trás dos Rótulos – Coletânea de convites à empatia à luz da CNV, do Bruno Goulart e da Neila Vasconcelos, ambos do projeto CNV em Rede. Eles reuniram 600 rótulos divididos em 60 categorias e, com um livro de consulta, nos ajudam entender cada insulto de um jeito diferente do modo como geralmente somos educados. Por exemplo, procurei por preguiçoso, que é o rótulo que eu mesmo me imponho quando chego ao final do dia sem realizar o que tinha programado. Olha só o que o verbete diz: 

“Não sou preguiçoso. Só não estou encontrando motivação para fazer minhas atividades”. Mergulhando no texto dos autores, leio que “quando chamamos alguém de preguiçoso, podemos no fundo desejar que a pessoa se esforce mais para realizar as atividades. (…) Podemos, ainda, desejar prevenir que a pessoa tenha dificuldades no convívio com os demais por falta de motivação dos outros em ajudá-la”. 

Lendo o trecho acima, boquiaberto, me pergunto: quando é que chamar o outro de preguiçoso (ou até mesmo a mim) iria convencer do quanto me preocupo com tal indivíduo  e seus objetivos? Acho que é no Dia de São Nunca que se fala, né? 

Só por essa breve transcrição já dá pra ver que o julgamento, o rótulo, o xingamento, a esculhambação, enfim, a ofensa, nos entregam superficialidade quando o que realmente precisamos é de profundidade nas conversas .Xingar só contribui para que o outro se defenda, eventualmente devolva a agressão e se deprima. Com essa dinâmica, ficamos presos a uma disputa eterna e insolúvel para saber quem está certo e quem está errado. 

No fim, como se já não fosse maravilhoso o suficiente, Bruno e Neila arrematam o capítulo com este texto para refletirmos: “Talvez por questões biológicas ou por fazer muito esforço físico e mental, essa pessoa (rotulada de preguiçosa) precise descansar mais que eu. Nesse caso, há o cuidado com a saúde, o que é muito importante. Talvez dormir seja para ela uma forma de evitar sentimentos desagradáveis, com os quais ela não esteja conseguindo lidar. (…) Se compreendermos melhor as pessoas, poderemos ajudá-las”. 

É sobre isto: compreender para garantir uma vida maravilhosa para todos. Vamos tentar? 

*Fábio Pereira é jornalista, mediador de conflitos e facilitador de Comunicação Não Violenta (CNV). Integra a ONG CNV em Rede e coordena a Câmara de Mediação Pacific. Instagram: @fabio.dialogos

Colunista: Fábio Pereira

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