Prof. Dr. Babalawô Ivanir dos Santos fala sobre combate à intolerância religiosa e a luta antirracista

“Toda luta é uma continuidade”

A história do Prof. Dr. Babalawô Ivanir dos Santos, 67 anos, é uma referência para quem acredita que através da educação e do engajamento na luta coletiva por desenvolvimento social é possível melhorar a trajetória das pessoas. Em resumo, o professor passou pela dura realidade de perder a mãe aos sete anos para a violência policial. Foi entregue ao Serviço de Assistência ao Menor, ligado ao Ministério da Justiça e que mudou de nome para Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem) depois do golpe militar de 1964, onde passou 12 anos recluso.

Por muito tempo, carregou o estigma “de ser um ex-interno de um sistema que considerava crianças e jovens negros pobres das comunidades como potencialmente um perigo social”. As barreiras sociais e o racismo não foram impeditivos para que o professor continuasse sua luta e foram, motivando-o, com o apoio de um amigo do internato, fundar a Associação dos Ex-Alunos da Funabem, em 1979. Isso contribuiu para jogar luz sobre as ações de grupos de extermínio, denunciando crimes por eles cometidos contra a população pobre e negra, como a Chacina da Candelária, em julho de 1993 e a Chacina do Vigário Geral, ocorrida no mês seguinte.

Com uma vida dedicada aos estudos acadêmicos e à militância da causa negra. Coordenou o primeiro levantamento oficial sobre o extermínio de crianças brasileiras para a Defense for Children International (DCI), entidade com sede em Genebra, na Suíça. O documento serviu de base para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lançado no Brasil em 1990. A frente do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas, colaborou e coordenou importantes campanhas – “Não Matem Nossas Crianças”, “Abolição do Trabalho Infantil” e “Tráfico de Mulheres é Crime”, entre outras – e dedicou a sua vida a batalhar ao lado de movimentos populares fundamentais como esses.

Em 2020, lançou o livro Marchar não é caminhar: interfaces políticas e sociais das religiões de matriz africana no Rio de Janeiro. O Prof. Dr. Babalawô Ivanir dos Santos concedeu uma entrevista à Raça e falou sobre sua história e suas perspectivas sobre a luta antirracista. 

Raça: Em julho de 2019, o senhor recebeu o Prêmio International Religious Freedom, entregue pelo Departamento de Estado do Governo dos Estados Unidos, em Washington. Como foi ser reconhecido por seu trabalho contra a intolerância religiosa?

Prof. Ivanir:  É um reconhecimento da luta cotidiana do Movimento Negro. Não é um prêmio individual. São 40 anos de militante, de estrada. Não dá para achar que qualquer conquista tem a ver com você pessoa. Ela é um prêmio de uma construção coletiva, posso estar nesse lugar e nesse papel, mas eu tenho essa compreensão. O prêmio é o reconhecimento da luta do movimento negro, dos direitos humanos, das expressões religiosas de matriz africana, dos ex-alunos da Funabem. Toda essa minha trajetória, que me acompanhou, que eu tenho trabalhado em várias construções coletivas. É um prêmio coletivo.

Raça: Nesses 40 anos de militância, o que o senhor percebe que mudou nas relações étnico-raciais?

Prof. Ivanir: Não mudou o quanto nós gostaríamos, mas têm mudanças. Não dá para dizer que não tem. Nós somos de uma geração que fez tudo para dizer que no Brasil tinha racismo. Para dizer isso aqui no Brasil não era fácil. Eu sou dessa geração. Hoje, já se fala até em racismo estrutural. Os brancos até falam disso (risos). Já admitem que o racismo estrutural é uma luta considerável. Agora, ainda não moveu as estruturas.

Observa as mulheres negras, a comunidade LGBTQIA+ negra como é que tá, os religiosos de matriz africanas. Antigamente, no setor do movimento negro era muito pouco presente, essa juventude como é que tem. Observa essa conquista, seja além da lei 10.639/03 (que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da presença da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”) a Lei das Cotas, quando nós começamos o pessoal dizia que era reforma, acabou virando pauta e agenda. Olha o número de estudantes negros que estão nas universidades. Tudo isso são conquistas a serem celebradas. A novidade, na minha opinião, da minha geração para essa, é ter uma massa crítica maior do que tinha no nosso período. 

Acho que muita coisa vai acontecer na frente. Porque toda luta é uma continuidade. Nós estamos dando continuidade à luta de Luiz Gama, de José do Patrocínio, de Luísa Mahin, importante não esquecer disso. É de muita gente. Não é uma luta que começou agora. É uma luta coletiva da Frente Negra Brasileira, do teatro Experimental do Negro, e estamos deixando um legado. Essa nova geração tem dado continuidade a esse legado. É o nosso papel, deixar para que outros levem adiante. Isso é o que mudou.

É uma luta de fato ancestral. Quem pensa que é o indivíduo ou que começa uma luta a partir de você, não tem nada de ancestralidade. Não é essa coisa que os liberais querem, de mostrar que cada um é capaz, não é isso. É uma luta coletiva.

Observe que todo momento de grande repressão o movimento negro refloresce bem. Foi na ditadura militar que o movimento se reorganizou e reapareceu na década de 70. E agora com toda essa crise, não vamos ter retrocesso, pode demorar um pouco, mas vamos continuar. Observe como tem várias coisas acontecendo, fico cada vez mais feliz quando vejo debates, seminários. Tem muitas coisas acontecendo com vários temas, racismo recreativo, não só contra o racismo. Temos qualificação para tudo quanto é lado, formação para tudo quanto é lado. Nós temos que apenas ter muita consciência da unidade. Não dá para alguém achar que leva sozinho para um campo. Porque a sociedade brasileira, as estruturas brasileiras sejam elas quais forem, seja do executivo, do legislativo, do judiciário, seja da iniciativa privada, do mercado, dos partidos políticos, das religiões são extremamentes racistas. Não adianta achar que se aliar a um setor aqui e ali vai ter vitória tentando criar uma desqualificação do outro porque não vai funcionar. É um desserviço para a luta. A causa tem que ser maior do que uma liderança, que uma pessoa.

Raça: Como o senhor tem percebido o cenário de intolerância religiosa no Brasil

Prof. Ivanir: Esse é um cenário político. Isso não acontece pela vontade dos pobres evangélicos, não. Nasce a partir de uma estratégia que envolve esse ataque às populações periféricas e de favelas do Rio de Janeiro, inclusive com o tráfico de drogas. Nasce com um trajeto bem delineado, claro, de dominação de territórios. Observe que esses mesmos setores que fazem isso são os setores que no período eleitoral apoiam a agenda conservadora, de extermínio da juventude negra, de misoginia, e homofobia. E cria dificuldade dentro desses territórios, eles têm mais força nesses territórios do que tem as associações de moradores, que, digamos que é uma coisa mais aberta, de todo mundo. Observa o que tem acontecido. É uma questão de dominação.

Agora, não dá para fazer o ataque aos religiosos pobres achando que eles são a grande causa. Tem que ver qual é a estratégia que é usada com a grande massa, de combater a intolerância religiosa, o ódio. Porque isso não é novidade no Brasil, nunca foi. Nós fomos perseguidos na colônia e no império, nas Ordenações Filipinas que era o código criminal, depois observa que na República, o código criminal nasce antes da constituição republicana,  ele é de 1890, a constituição é de 1891, onde no seu artigo 156 ou 157 estava lá, claramente, e de forma legal a perseguição a nossas práticas de saúde, às nossas práticas culturais, espirituais e sociais, estava lá. Nasce também a Lei da Vadiagem. Hoje mudou de mão, mas há conivência e o silêncio do Estado diante disso. Isso não acontece como uma coisa à toa. Observe que esses setores, inclusive, criaram uma bancada muito forte. Seja na câmara municipal, na assembleia legislativa, na câmara federal. E vem sendo bancada de apoio a governos locais,  regionais e nacionais. E não abrem diálogo, mas nós temos que ampliar.

E é importante que o conjunto da sociedade entenda que o ataque à Umbanda e ao Candomblé nas comunidades e em qualquer lugar que seja é um ataque à democracia. Um ataque à cultura, observa os artistas, o que tem acontecido. As liberdades são atacadas, seja de imprensa, a políticas, isso é fruto do facismo. Não é a defesa ao candomblé e à umbanda, pura e simplesmente. temos que entender que o ataque à umbanda e ao candomblé é um ataque à liberdade, à democracia e ao estado laico. 

Raça: Como as eleições de 2022 podem mudar as relações raciais no país?

Prof. Ivanir: Primeiro depende muito da nossa comunidade. De criar uma agenda comum que possa ser oferecida ao conjunto dos partidos, independente das alianças que cada um vai construir. É o que tenho visto aí. Ninguém ache que vai conseguir entrar em um partido sozinho, vai se eleger no âmbito federal e vai ser uma vitória do movimento negro. É uma ilusão isso.

Acredito que primeiro a gente precisa ter uma agenda comum que possa ser oferecida ao conjunto dos partidos, estou falando dos partidos progressistas porque a gente já sabe qual a postura deles, mas mesmo nos progressistas a representação negra é ínfima, ainda é muito pequena. É importante que aumente. E mais, aproveitar a disputa eleitoral como momento de propagar as nossas agendas. Aí não é só a proporcional, às vezes não tem as condições financeiras suficientes para a eleição da bancada, mas o que move uma bancada proporcional é o majoritário, é importante a nossa representação na chapa majoritária. É impossível que um partido político que tenha presidente e vice-presidente da república, elege governador e vice-governador, senador e suplente, a representação com voz não esteja nesse lugar.

Então o partido para mostrar que ele tem compromisso, não é só lançar o proporcional que vai ser muito importante eleger proporcional, mas só elege proporcionais com muito mais força se tiver na chapa majoritária a nossa presença com voz. Nós temos que dizer que a gente não só tem voz, mas que a gente também pensa o Brasil. Temos que ser ousados.

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