Em um país onde a pele preta e as identidades trans ainda enfrentam olhares de descaso, uma pesquisa nascida na Bahia chega como esperança, reparação e cuidado. O estudo — que será realizado no Hospital Universitário Professor Edgard Santos (Hupes-UFBA), em Salvador — vai focar na saúde da pele de homens trans negros, um grupo que há muito tempo tem sido invisibilizado nas estatísticas e nos consultórios.
A iniciativa, que vai beneficiar cerca de 50 homens trans negros, foi reconhecida nacionalmente com o Prêmio Dermatologia + Inclusiva, promovido pelo Grupo L’Oréal Brasil, e vai receber R$ 50 mil para ser desenvolvida. Além de trazer avanços clínicos, o projeto carrega um valor simbólico: dar visibilidade, respeito e cuidado a pessoas que enfrentam diariamente as consequências do racismo e da transfobia — inclusive na forma como suas peles são tratadas (ou ignoradas) pela ciência.
Saúde que também acolhe
A acne é um dos efeitos colaterais mais comuns da terapia hormonal de afirmação de gênero, afetando até 85% dos homens trans no primeiro ano de uso. Quando essa acne aparece em peles negras, o impacto pode ser ainda maior — com manchas, inflamações mais visíveis e pouca oferta de produtos ou tratamentos pensados para essas especificidades.
A endocrinologista Luciana Oliveira, que coordena o Ambulatório Transexualizador do Hupes-UFBA, explica que a pesquisa quer ir além do tratamento: “Nosso objetivo é oferecer soluções reais para uma população que, além de lidar com os desafios da afirmação de gênero, também sofre com a negligência histórica da saúde pública. É sobre ver, ouvir e cuidar com respeito”.
Representatividade também na ciência
A dermatologista Luise Daltro, que atua diretamente no atendimento dermatológico de pessoas trans no hospital, destaca a importância de trazer a ciência para perto das vivências reais. “Por muito tempo, pessoas negras e trans ficaram fora dos estudos clínicos. Dar início a esse projeto é, ao mesmo tempo, um passo científico e um gesto político de inclusão e reparação.”
O estudo será realizado em parceria com o grupo de pesquisa Endogen (Endocrinologia & Gênero), da UFBA, e com o Serviço de Dermatologia do hospital universitário. A ideia é monitorar os pacientes por cerca de dois meses, avaliando a eficácia de dermocosméticos no controle da acne e na prevenção das manchas hipercrômicas — comuns em peles negras.
Um cuidado que cura feridas além da pele
Mais do que desenvolver um novo protocolo de cuidados dermatológicos, a pesquisa quer abrir portas. Portas para que a ciência inclua, para que as universidades se responsabilizem, e para que a saúde pública passe a enxergar a diversidade da pele, do corpo e da identidade de quem precisa ser cuidado.
“Esse prêmio representa o reconhecimento de algo muito maior: a força das pessoas negras e trans que acreditam que a ciência também pode ser instrumento de transformação social”, conclui Luciana.
Um país que ainda precisa ouvir mais
Em 2024, o Brasil liderou, pelo 17º ano seguido, o ranking de assassinatos de pessoas trans, com 105 mortes registradas. É nesse cenário que iniciativas como essa se tornam ainda mais urgentes. A saúde integral da população trans — especialmente da população trans preta — precisa deixar de ser exceção e virar prioridade.
Porque cuidar da pele também é uma forma de afirmar existência, dignidade e humanidade.