Quando a empresa cumpre o papel social em todos os aspectos

Um choque de temperatura foi o estopim para a iniciativa do Norte Shopping, no Cachambi, na Zona Norte do Rio, para abrigar pessoas em situação de rua durante o inverno, que tem sido de frio intenso principalmente nas madrugadas. Na noite da última quinta-feira, o coordenador de segurança do shopping, Thiago Pampurre, encerrava o expediente e saía da confortável sala, com ambiente a cerca de 26 graus, para ir pra casa. Na área externa os termômetros marcavam 16 graus. A mudança brusca o fez se questionar sobre quem não tem para onde ir e precisa viver nas ruas. Da conversa com representantes da subprefeitura da Zona Norte e da Secretaria municipal de Assistência Social surgiu a mobilização que na noite de ontem abriu pela primeira vez as portas do centro comercial para abrigar a quem precisa.

O shopping destinou uma sala onde antes funcionava parte do serviço administrativo — que segue com os funcionários em sistema home office — para acolher durante a noite 30 pessoas em situação de rua. A chegada é por intermédio das equipes do Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS) Janete Clair, responsáveis pela abordagem social na região, a partir das 17h, que faz um pré-cadastro e os leva. No local, recebem casaco, meias e roupa de cama, além de jantar e, após o pernoite, café da manhã. Todas as doações são feitas com ajuda de parceiros, como grupos organizados por voluntários e da iniciativa privada. A princípio, o projeto tem previsão de durar 15 dias.

— Além de acolhê-los estamos com toda a cautela dos protocolos de segurança de prevenção à covid. Então, ao receber o pessoal, preparamos a área, e de manhã, após saírem, tem a higienização para recebê-los à noite — conta Thiago Pampurre.

Na primeira noite, oito homens foram levados para o local. O perfil é variado, como foi identificado pela equipe de Assistência Social. O intuito também é de tentar convencê-los a deixar as ruas e de prestar os atendimentos necessários. Na ocasião, um deles aceitou ser encaminhado para tratar a dependência química e dois que precisavam de atendimento médico foram levados para unidades de saúde.

A secretária da pasta, Laura Carneiro, conta que o frio no último mês tem contribuído para o aumento no número de acolhimentos. Com a novidade, ela acredita que o número de interessados em passar a noite no espaço cedido pelo shopping aumente já nesta quarta-feira:

— O CREAS já faz o contato direto com essas pessoas. Já acompanha quem está na rua, conhece pelo nome, sabe a história. O CREAS faz esse trabalho diurno porque tem que sensibilizar para sair da rua. Muita gente não quer sair. Essa noite será diferente da noite passada, vai ter mais gente. Na rua, ficam sabendo, e aí eles se animam, e a gente aproveita — conta a secretária Laura Carneiro.

Com menos de uma semana desde a ideia para a iniciativa até os planos saírem do papel e ocuparem o espaço, Thiago Pampurre já planeja o próximo passo. Ele destaca que tem instigado, junto aos parceiros da iniciativa privada, a criação de vagas de empregos para os acolhidos. Em meio à diversidade de perfis de quem foi parar nas ruas, há pessoas com formação profissional, mas sem oportunidades.

— O que falamos ontem para eles é que não queremos tê-los aqui daqui há um mês. Queremos que eles estejam trabalhando daqui um mês — afirmou Pampurre, que conseguiu o redirecionamento para a primeira vaga. — A gente já gerou a primeira oportunidade para o Rogério, que tem um currículo muito bom, um potencial de empregabilidade, e que está nessa situação de rua por força da pandemia. Ele vai trabalhar com a gente a partir de hoje, e vamos mobilizar lojistas e a iniciativa privada para ver o que conseguimos realocar para reinserir no mercado de trabalho.

No currículo de Rogério Alexandre Moreira, de 54 anos, tem formação em eletrônica, elétrica, telecomunicações e instrumentação industrial. Nem com tanta experiência foi poupado da crise financeira, que abalou a família e o vez ir para as ruas logo após a confirmação do diagnóstico de Covid-19. Antes morador do Méier, passou a vagar por bairros como Ipanema e Flamengo, vivendo de pequenos trabalhos de maneira autônoma.

— A covid inteira na rua, 10 dias desesperado, porque eu não podia trabalhar na casa dos outros, que é do que eu vivo hoje, de serviço autônomo porque eu tinha consciência de que poderia contaminar alguém. Eu jamais quero levar para a minha sepultura a consciência pesada de ter provocado a morte de alguém e precisava sobreviver. Mas Deus ouviu meu clamor e me mandou um serviço que eu iria realizar na portaria de um prédio e eu realizei o serviço sozinho — conta Rogério.

Ele chegou ao Norte Shopping na noite de ontem após aceitar o convite da equipe do CREAS. Nas ruas, desfez a imagem de que ele próprio tinha de quem não tem para onde ir. Com a oferta do novo emprego, destaca a importância da formação para um recomeço quando é dada a oportunidade:

— Antes de passar pela minha própria experiência eu acha que todo mundo que estava na rua era ladrão, drogados, optaram porque não conseguiram conviver com famílias. Às vezes não consegue viver em família porque não tem força, não tem uma estratégia, não tem disciplina, não tem resiliência, e isso leva a pessoa ao desespero, assim como eu. E tem muita gente trabalhadora aí nas ruas, muita gente que queria trabalhar, mas não tem oportunidade, não tem um ensino profissionalizante. O mercado de trabalho é muito competitivo, a tecnologia está tomando conta de tudo — aponta.

Comentários

Comentários

About Author /

Start typing and press Enter to search

Open chat
Preciso de Ajuda
Olá 👋
Podemos te ajudar?