Quando cuidamos de todos, também somos vencedores 

Aos 12 anos, todos os dias eu encontrava no ponto de ônibus o presidente de um clube de futebol que ficava perto da minha casa. Ele, com idade para ser o meu avô, contava histórias sobre os dias de glória vividos na várzea e listava os craques revelados pela equipa desportiva. 

Um dia, ele me convidou para jogar. Eu não gostava de praticar o esporte e, por isso, não aceitei. Mas, como muitas crianças, em vez de dizer não explicitamente, apenas não respondi e desconversei. Ele, daí em diante, passou a fazer o mesmo convite na maioria das vezes que me reencontrava. E eu continuava a declinar sem pronunciar a palavra minúscula e libertadora, o que se demonstrou bem ineficiente. 

Certa vez, ele revelou a intenção da ideia: queria cuidar da minha saúde, pois achava que meu peso não era o ideal para a minha idade. Como as pessoas ao redor pareciam concordar mais com ele e menos comigo, cedi. Quando me vi, estava dentro de um campo sem grama, vestindo um colete azul bem largo e calçando chuteiras que nunca tinha usado, compradas para a ocasião. 

Veio então o técnico e fez uma das perguntas mais difíceis que eu já ouvi: “joga de quê?”. Embora meu pensamento tenha gritado “sei lá”, respondi que era zagueiro. Inexperiente, escolhi essa posição porque eu sabia que ficava próxima do goleiro e, por isso, suspeitava que não precisaria correr muito. Ledo engano. Além disso, pensei que ninguém esperava que um zagueiro fizesse gol. Ao escutar minha resposta, ele orientou com uma voz mais alta do que eu estava acostumado: “vai para a lateral esquerda”. E eu fui. 

Diante da missão, a minha grande dúvida era: o que faz um lateral esquerdo? Como perguntar seria o gatilho para sentir vergonha, escolhi imitar o lateral direito. Quando ele corria pra frente, eu subia rumo ao ataque. Quando ele voltava, eu descia para a defesa. Não deu outra. Perdemos de 3 a 0, com todos os lances fatais dos adversários sendo criados pelo lado do campo onde eu estava. Aquela foi uma estreia desafortunada para um futuro-quem-sabe-um-dia camisa 6 da seleção.

Findo o amistoso, foi no vestiário que eu senti mais medo. Percebi que a molecada do elenco considerava aquele jogo definitivo, pois tinham olheiros assistindo. Fiquei sabendo que olheiros são pessoas mais experientes que observam jogadores iniciantes e escolhem aqueles que admiram para ir jogar profissionalmente. Então, preocupadas com seu futuro, as outras crianças, já longe das vistas dos adultos, começaram a eleger culpados pela derrota, trocando acusações e xingamentos, a fim de possivelmente encontrar sentido e explicação para não terem sido indicadas para jogar em times mais estruturados e com algum apoio financeiro. 

Por qualquer motivo que eu não sei explicar, fui poupado. Ninguém se dirigiu a mim e me responsabilizou pela derrota. Fiquei ali tremendo dentro de uma bolha invisível só sendo chicoteado pelos meus próprios pensamentos: “eu não deveria ter aceitado jogar”; “eu fui o pior jogador em campo e prejudiquei o time”; “será que tem sorvete na cantina ali em frente?”. Esse último era o jeito que eu tinha aprendido a compensar sofrimentos. 

Ali, naquele vestiário alvoroçado onde pairava uma frustração coletiva imprevisível, eu ainda não sabia que existia a Comunicação Não Violenta (CNV), que é uma técnica muito útil para nos ajudar a dizer não e, se quisermos, explicá-lo aos outros, principalmente para nós mesmos. Igualmente, eu ignorava que a CNV também nos ajuda a entender o porquê escolhemos fazer coisas com as quais não concordamos, pois ela nos deixa conscientes de que tudo o que fazemos é um jeito, às vezes trágico, de atender necessidades que são muito valiosas e merecem ser cuidadas de um jeito que nos dê paz. Era impossível que eu soubesse isso aos 12 anos? Não. Faltou oportunidade. 

Esta coluna é uma resposta a essa ausência na vida de muitos da minha geração e de outras que nos antecederam. Embora aqui eu esteja escrevendo para um público mais velho do que pré-adolescentes, creio que empoderando mais pessoas podemos alcançar as crianças para se tornarem adultos capazes de lidar com os sentimentos desagradáveis de uma forma diferente da qual estamos acostumados e reproduzimos. 

Sonho com vestiários, sejam eles varzeanos ou de campeonatos multimilionários, menos violentos. E não só eles: as casas, as escolas, os ambientes de trabalho, os templos religiosos podem ser mais acolhedores do que são hoje. 

Apesar do medo, frustração, vergonha e preocupação legítima com o futuro, as pessoas podem escolher deixar de eleger culpados para começar a criar soluções que cuidem de todos. Isso, sim, também nos faz vencer, ainda que de um jeito não convencional, e nos dá razões para celebrar. 

*Fábio Pereira é jornalista, mediador de conflitos e facilitador de Comunicação Não Violenta (CNV). Integra a ONG CNV em Rede e coordena a Câmara de Mediação Pacific. Instagram: @fabio.dialogos

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Jornalista e mediador extrajudicial com especialização em conflitos familiares e oficinas de parentalidade pelo Instituto Brasileiro de Mediação Familiar. É facilitador de Comunicação Não-Violenta (CNV), colaborando com a ONG CNV em Rede e integrando o banco de facilitadores desta disciplina na Escola Nacional de Administração Pública (ENAP). É colunista de CNV da Revista Raça.

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