Quem se interessa pelo pensamento de uma mulher negra?

Escritora levanta debate sobre o que é ser uma escritora negra e como essa “persona” importa ao mercado editorial

Nas pausas da revisão do miolo do meu livro, que sai pela editora Dandara em breve,  aproveitei para ler “O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo“,  de Djaimilia Pereira de Almeida e foi a coisa mais acertada que fiz, porque me fez refletir sobre a quem interessa o pensamento de uma pessoa negra – ou, no caso, as ideias de uma mulher negra.

O livro de Djaimilia Pereira de Almeida não apresenta uma resposta, mas abre uma discussão profunda a respeito do que pode ser uma escritora negra, hoje.

Djaimilia e eu somos da mesma geração. Eu nasci em 1978, ela em 1982. E, ainda que em países e contextos distintos, concordo que nascemos e vivemos em um tempo em que é possível – e, até certo ponto, incentivado ou celebrado, a existência de escritores/as negros/as/es. Prova disso está nas primeiras linhas do livro:

“[…] A data do meu nascimento é o meu maior privilégio. Peso cada palavra. Houvesse eu nascido setenta anos antes, e não haveria lugar a estas linhas, ou a qualquer outra dos meus livros. Fosse eu uma mulher negra da geração da minha avó, ou mesmo da geração da minha mãe, e o meu destino seria outro”.

O livro é um exemplar de bolso com 96 páginas, publicado neste ano pela editora todavia, e apresenta um ensaio, uma entrevista e a transcrição de uma fala apresentada em uma universidade norte-americana. No material de divulgação, a editora informa que publicou o livro porque é “um ensaio penetrante sobre raça, gênero e cultura”.

Sem dúvida, o livro é mais do que isso. É, também, uma análise de um tempo e contexto em que vive uma mulher negra, angolana, criada e residente em Portugal, casada com um homem branco e que tem como seu principal refúgio a escrita.

É desse lugar que Djaimilia Pereira de Almeida fala e é também dele que ela não deseja ser prisioneira, mesmo sabendo que, hoje, ainda é o espaço/tempo que permite a ela, e  tantas outras mulheres negras, a possibilidade de publicar um livro.

Ela deixa muito nítido o processo de enxergar-se, entender-se negra e os obstáculos ou ausências que enfrentou ao conviver com um pai que lhe negava a negritude.

Tenho ouvido e lido muito sobre isso. A última leitura foi o livro de Bianca Santana, “Quando me descobri negra”. Isso tem me levado a pensar que talvez seja bom escrever sobre ser criada em uma família negra e com consciência negra.  A primeira coisa que me vem à cabeça quando penso nisso é que, desde muito cedo, tive consciência do racismo – o que me protegeu e me amadureceu antes do tempo. Mas isso é conversa para outro momento.

O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo”, em poucas páginas, informa quem é essa escritora e como essa “persona” interessa, neste momento, ao mercado editorial.

Toda mulher negra que escreve deveria ler este livro, especialmente se for da mesma geração que a autora, porque, ao mesmo tempo que pode gerar uma certa empatia, também pode ajudar a desviar das armadilhas da sofisticação do racismo.

Ela também faz um apelo à responsabilidade de autores/as negros/as/es por reconstruir ou construir uma identidade negra, que eu entendo como uma narrativa, a construção de verdades e fábulas, a partir de uma perspectiva e pensamento negro. Contudo, isso é opinião minha – como tudo aqui, de leitora, de quem imagina a partir daquilo que lê.

Crédito da foto: Humberto Brito/Site Todavia

Sobre a autora

Nascida em Luanda e criada em Portugal, Djaimilia Pereira de Almeida é professora da New York University e escritora. Seu primeiro romance, “Esse Cabelo” (2015), foi aclamado pela crítica e recebeu destaque e distribuição para além de Portugal. Também é autora de “Luanda, Lisboa, Paraíso” (2018), “A visão das plantas” (2019) e “O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo” (2023), entre outros. 


LANÇAMENTOS

Ébano sobre os canaviais,  de Adriana Vieira Lomar

Romance histórico vencedor do Prêmio Kindle de Literatura 2022, ‘Ébano sobre os canaviais’ discute preconceitos em meio a uma história de amor. No livro, Adriana Vieira Lomar presta homenagem à sua ancestralidade multirracial, narrando uma parte terrível da história do Brasil — o último país das Américas a abolir a escravidão — e os horrores perpetrados ainda hoje pelo racismo estrutural. 


A última volta do Rio, de Neil Lopes
O livro narra a história de um preto carioca da gema que viveu os anos de ouro da Cidade Maravilhosa e hoje sofre com as mazelas que a estão destruindo, tais como o crime, a corrupção, o racismo religioso e a intolerância. O autor do livro vem se empenhando em produzir uma literatura ficcional em que o indivíduo negro e o povo negro, em geral, sejam protagonistas quase absolutos das tramas que desenvolve, sempre ambientadas a partir dos subúrbios do Rio de Janeiro. 


Águas de estuário, Velia Vidal

Em Águas de estuário, a escritora afro-colombiana Velia Vidal apresenta um livro autobiográfico, que por meio de cartas endereçadas a um amigo, revela suas múltiplas faces de mulher, livre e ampla, com inquietudes e dores, alegrias e sexualidade, mas distante da hipersexualização tão comumente atribuída às mulheres negras. Para além de expressar seus sentimentos, emoções e conflitos com honestidade e sem medo de julgamentos, a autora também conta como fundou o Motete, projeto que leva livros infantis e histórias a crianças do Chocó, estado mais negro da Colômbia.


Balanço afiado, de Allan da Rosa e Deivison Faustino
Marcado por um hibridismo formal e temático, o livro é uma conversa cheia de ginga em que Allan da Rosa e Deivison Faustino (Nkosi) constroem uma reflexão sofisticada sobre música, relações raciais, sociabilidades e masculinidades negras a partir da obra do mestre Jorge Ben, utilizando o que chamam de filosofia maloqueira. A diversidade dos temas cingidos pelas composições de Jorge Ben e a desenvoltura com a qual Da Rosa e Faustino transitam entre eles são, a um só tempo, herança e práxis do pensamento negro de vanguarda.


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Jornalista com experiência em gestão, relações públicas e promoção da equidade de gênero e raça. Trabalhou na imprensa, governo, sociedade civil, iniciativa privada e organismos internacionais. Está a frente do canal "Negra Percepção" no YouTube e é autora do livro 'Negra percepção: sobre mim e nós na pandemia'.

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