Raça, classe e feminismo negro no Brasil pós-Bolsonaro

Um soco no estômago, uma agonia, um aperto em várias feridas deste Brasil contemporâneo, que não resolveu problemas clássicos já equacionados pelo resto da humanidade, como o trabalho escravo, noticiado com tanta indignação dias atrás por muitos que, independentemente de posições ideológicas, mantêm seu quartinho de empregada doméstica, ou melhor, sua mini senzala em casa ou no apartamento. Este é o enredo que a Rede Globo leva ao ar hoje após o BBB em “Falas Femininas – Histórias Impossíveis”.

Sob a direção de mãos e olhares negros, a equipe de roteiristas, pesquisadoras e produtoras, formada em sua maioria por mulheres negras como, Renata Martins, Grace Passô e Jaqueline Souza, que mergulharam em um universo muito conhecido por pessoas negras, deste país de cultura escravocrata e racista: o serviço doméstico. As autoras usam como centro da trama uma das instituições do período de escravização muito presente no nosso cotidiano, pois quem, sendo negro ou negra, no Brasil de hoje, não tem ou teve a irmã, sobrinha, prima, a mãe, as tias ou avó como empregada doméstica?

Estive no Projac, sede das produções Globo, ao lado de uma plateia formada em sua maioria por mulheres negras junto com o elenco de “Falas Femininas – Histórias Impossíveis”. Pude me emocionar, chorar e me revoltar com as humilhações, sarcasmos e hipocrisia protagonizados por uma patroa branca “boazinha”, interpretada brilhantemente pela atriz Isabel Teixeira, uma espécie de Sinhazinha dos tempos atuais, que até tem consciência dos privilégios brancos, mas rejeita e se assusta com qualquer avanço negro contestador cada vez mais presente em nossos dias. A interpretação da atriz Luellem de Castro no papel da empregada Mayara é também magistral.

A produção não dialoga com outras obras que tratam do mesmo tema, como como o clássico “Que horas ela volta”, protagonizado por Regina Casé, lançado em 2015, dirigido por Anna Muylart, ou até mesmo um mais antigo, “A hora da Estrela”, de Clarisse Lispector, produção de 1986; todos filmes cujos temas são trabalhadoras femininas romantizando classes em ascensão sem grandes conflitos. Em “Falas Femininas – Histórias Impossíveis” não há espaço para poesia ou qualquer outra manifestação que não seja o embate colocado no Brasil de hoje entre o branco que vê seus privilégios ameaçados e os descendentes de escravizados, com cada vez mais espaço e consciência do lugar de protagonismo.

No debate que se seguiu após a exibição, novas feridas foram abertas como os medos e desafios das mulheres negras e até brancas neste período de tantas incertezas, num país cujos números de feminicídios e outras violências são assustadores, onde uma mulher é estuprada a quase dez minutos e o pior, o estupro já foi até satirizado por um ex-presidente da República. Aliás, figura esta que recebeu quase a metade dos votos válidos dos brasileiros.

Na fala de Renata Martins, uma das autoras, fica claro a mudança da emissora, para problemas seculares enfrentados por negros e negras neste país de maioria negra, abandonado por políticas públicas e, por isso mesmo, na reserva de trabalhos advindos do período escravocrata, como babás, faxineiras, seguranças, enfim, como definem os racistas de plantão “serviço de preto”.

Renata relata: “São nítidas as mudanças da Rede Globo de hoje e a emissora de alguns anos atrás quando passei por aqui”. Sua fala é coberta de razão. Seria impensável nas décadas de 1970, 1980 e 1990, ver a emissora que tinha em suas produções, como quase reserva de mercado de trabalho para atores e atrizes negras, papéis subalternos e de escravizados de novela de época e agora dando uma guinada tão grande como nas atuais produções “Vai na Fé”, da protagonista Sol vivida pela atriz Sheron Menezes em horário nobre ou Falas Femininas – Histórias Impossíveis”.

O episódio a ser levado nesta noite é, sem dúvidas, um marco, na linguagem, no elenco, na produção e no roteiro, enfim, mostrando que o óbvio que disse em entrevista à Folha de São Paulo, em meados dos anos de 1980, de que que só mudaríamos nossa cara na TV brasileira quando tivéssemos roteiristas, diretores, produtores negros por trás dessas produções.

“Falas Femininas” consegue ter a grandeza não só pela equipe quase toda negra, mas por outros fatores. Como não negar o trabalho estrutural que a emissora tem feito já há algum tempo colocando em prática o básico que falo nas consultorias que dou sobre diversidade e inclusão: trazer o diverso para o centro das decisões. Quando olhamos para a Globo de hoje, é perceptível o papel de uma Samanta Almeida, mulher negra, diretora de criação e conteúdo da emissora, que não está sozinha, tem outros autores diretores roteiristas negros, caso de Elísio Lopes, um dos autores da nova novela das 18 horas.

Foi um longo caminho até aqui, onde os papéis negros, roteiros e produções pareciam todos inspirados em um clássico norte-americano de 1967, cujo título português é “Adivinha quem vem para o jantar”, com uma empregada doméstica alheia às mudanças que estavam acontecendo nos Estados Unidos da epoca; o trama conta também com a brilhante interpretação de Sidney Poitier, no papel de um homem negro, um super profissional em matéria de ascensão, mas sem família e se apaixona por uma mulher branca de classe média enfrentando os conflitos dos brancos progressistas e racistas do final dos anos de 1960. “Falas Femininas” é um rompimento de vez com esse modelo.

A grande questão desta produção, além de tocar com profundidade em feridas expostas da sociedade brasileira, é: o que vem depois disso? Quando iremos consolidar verdadeiramente caras e corpos negros deste país de maioria negra não só nas produções de TV, mas também em todos os espaços de trabalho e de poder, fatura de uma dívida histórica do período escravocrata e do pós-escravidão que ainda está por ser sanado.

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jornalista CEO e presidente do Conselho editorial da revista RAÇA Brasil, analista das áreas de Diversidade e inclusão do jornal da CNN e colunista da revista IstoÉ Dinheiro

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