Raça entrevista Noma Dumezweni de A Pequena Sereia

Por Fernanda Alcântara

A Pequena Sereia, novo filme em live action da Disney, é uma joia rara que subverte um conto clássico e traz o debate interracial para a vida

Em 2017, quando a Disney lançou o live action de A Bela e a Fera, me lembro de ter escrito sobre uma mudança a presença significativa de negros na corte do príncipe. Não era uma mudança na representatividade, afinal, os protagonistas continuavam brancos, em um filme que falava sobre preconceito, mas já apontava um aceno para o debate de representatividade nos clássicos na posição da empresa.

Sabemos que esta mudança não vem de graça, mas depois de muita luta e crítica. Mas também é um desafio para a companhia que, desde que anunciou Halle Bailey para o papel de Ariel, como protagonista do longa, vem sofrendo diversos ataques em nome de uma “representação ruiva” simplesmente ridícula. E ridicularizo a situação por um motivo bem pontual: Halle Bailey parece ter nascido para o papel. Ela é a pequena sereia.

Halle entrega uma performance cativante, trazendo vulnerabilidade, força e uma voz poderosa para o papel. Sua capacidade de transmitir emoção e expressar-se através da linguagem corporal e facial é notável, e personifica a determinação e a curiosidade da princesa sereia.

Devo confessar também que o clássico A Pequena Sereia nunca me encantou, de fato. Eu, como muitos, defendia se tratar de um roteiro que falava apenas sobre uma mulher que abre mão de tudo por um homem e este, sempre, muito confortável em sua posição. Mas depois de me arrancar tantas lágrimas, a nova versão de A Pequena Sereia e, em especial a atuação de Halle mudou completamente minha percepção sobre a história.

Nesta nova versão, o tema do preconceito acerta de forma certeira o coração daqueles que entendem a necessidade do debate sobre as relações inter-raciais, e se engana quem pensa que esta é uma discussão antiga. Durante grande parte da história americana, casamentos entre pessoas de diferentes raças eram considerados ilegais e eram alvo de discriminação e segregação. No Alabama, em particular, a lei contra casamentos interraciais vigorou até 2000.

Mas para além da representatividade e diversidade, o live action da Pequena Sereia merece ser elogiada por diversas razões. Desde a bela fotografia até o talento dos atores, o filme conseguiu capturar a essência mágica e encantadora da história de Ariel, ao mesmo tempo em que trouxe um frescor e uma abordagem contemporânea para o público atual sobre o amor.

É neste sentido que defendo que a direção do filme trouxe um olhar inovador para a história de Ariel; uma fala de amor, de coragem, de amadurecimento, todos elogios para entender a questão racial não somente nos Estados Unidos, mas no mundo.

Quanto aos cenários subaquáticos, há de se dizer também que são visualmente deslumbrantes, com uma paleta de cores vibrantes que nos transporta para um mundo submarino repleto de vida e maravilhas. A coreografia das cenas de dança e ação também foi bem executada, adicionando energia e ritmo à narrativa, além de uma trilha sonora com as músicas da animação.

Embora passe por temas densos, é importante mencionar a mensagem positiva que o filme transmite. A história da Pequena Sereia é um conto atemporal sobre coragem, autoaceitação e perseverança, e o live action mantém esses valores trazendo uma nova perspectiva. Nos lembra da importância de resistir, enfrentar desafios e lutar por aquilo em que acreditamos, mesmo quando o mundo ao nosso redor parece nos limitar.

Diante dessas perspectivas, a Revista Raça entrevistou com exclusividade Noma Dumezweni, que interpreta uma personagem criada especialmente para o live action, a rainha Selina. Renomada atriz britânica, Noma é conhecida por sua destacada carreira no teatro e por papéis no cinema e na televisão e falou sobre diferentes temas que atravessam o filme. Confira:

Minha primeira pergunta é sobre a diversidade e a discussão antirracista, que é trazida tanto no roteiro, através da narrativa dos dois mundos – mar e terra -, quanto na escolha de Hale Bailey como Ariel. Como você, mulher negra, vê e se relaciona com a causa da representatividade?

Obrigada pela pergunta. Estou muito grata por estar nesta versão do filme, porque vejo tantos tipos diferentes de pessoas, e essa é a melhor forma de representação. E interpretar a rainha-mãe de nosso jovem príncipe e herói é um privilégio, porque nisso eu pude ser uma rainha. Não temos muitas rainhas de contos de fadas parecidas comigo, como nós. Essa sensação de representação para mim foi tão grata que eles disseram, adoraríamos que você fizesse isso e sabemos o que isso vai fazer.

Por outro lado, eu pensei, “eles realmente sabem o que isso vai causar? Eu não acho que os caras sabem como vai ser enorme”. E eu sei que será, porque o mundo da sereia é lindo. Uma das minhas cenas favoritas é quando você conhece todas as irmãs de Ariel, enquanto elas esperam por Ariel na lua de coral com seu pai. E você apenas vê essa bela variedade de seres incríveis, mostrando que o rei Tritão andava muito pelo mundo, circulava muito, e essas belas criaturas foram criadas. E estas pequenas coisas, para mim são tão importantes, torna-se uma conversa maior para outras pessoas.

Podemos dizer que este é o mote do filme?

Essa discussão serve para entendermos o poder de estar em certos espaços e papéis, e para os outros terem essas conversas, de sua própria demografia, de sua própria experiência, e ver o que isso faz com as pessoas. Porque é o que eu sinto quando me vejo representada, as pessoas levam para dentro de si mesmo. Então é sobre amor, sobre conexão, sobre saudade. Ao nos voltarmos à nossa humanidade, podemos entender o que o mundo exterior nos dá, mas sempre temos que voltar ao mundo interior.

A parentalidade e a superproteção dos pais em relação aos filhos são dois temas muito presentes também. Como você vê essas questões?

Houve um equilíbrio adorável para mim ser capaz de interpretar a Rainha Selena, como um novo personagem, e é um paralelo entre a paternalidade no mundo do mar e no mundo da terra. E o que você testemunha nos filmes são pais que não sabem como deixar seus “bebês” saírem para o mundo, e são seus bebês que os ensinam que eles devem deixá-los sair para o mundo e serem as versões mais completas de si mesmos.

Para mim é um nível muito básico: é amor, amor, amor. Ambos os pais amam, mas não estão indo muito bem no começo porque não conseguem ver esses filhos crescidos na sua essência. Portanto, é uma história universal. Como você expande seu amor? Estou sentada aqui conversando com você porque minha filha,que acabou de fazer 16 anos, está bem ali sentada em outro canto. Ou seja, ainda estou trabalhando nisso. É sobre o tempo, nós [mulheres negras] temos tudo isso em nossas vidas agora. É toda a nossa vida.

Você é uma rainha negra em um filme da Disney. Que impacto você acredita que essa nova versão terá nas crianças brancas e negras?

Eu volto novamente sobre quando volto o olhar para as irmãs de Ariel e essa é uma bela representação. Ali, esses mundos existem no mesmo lugar. Quando você olha para o nosso mundo na terra, é uma bela sensação de diferentes comunidades vivendo lado a lado. E novamente, sim, eu sou a rainha negra no meio disso tudo. E é nessa representação em que eu realmente acredito. As pessoas gostam de dizer aos seus filhos que eles estão na história, que podem ser a pequena sereia, que eles podem se ver nela. E isso é uma alegria, porque a animação foi linda e todos nós ficamos emocionados, mas o que a Disney fez agora foi levar a outro nível, acredito.

Como foi lidar com todo o discurso de ódio destilado durante toda a produção deste filme, exatamente por ter esta mensagem?

Eu não sei como lidamos. Tudo o que se pode fazer é ter a experiência. E em todos os momentos da vida. Há pessoas que escolheram vir e fazer o discurso de ódio, mas não assistiram ao filme, e isso não faz sentido, não há argumento, não há debate a ser feito. O que eu digo é: venha assistir ao filme. Decida sobre o que faz você se sentir, e então podemos ter uma conversa.

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