Raça Indica sugere o filme “Filhas do Vento”de Joel Zito Araújo e os livros, “Quarto de Despejo”de Carolina Maria de Jesus e “Poetas do Sarau Suburbano”, de Alessandro Buzo.
Filhas do Vento, de Joel Zito Araújo
O cinema negro brasileiro existe e conta histórias belissimas como a que podemos assistir no filme “Filhas do Vento”, longa-metragem lançado em 2005 por Joel Zito Araújo e que traz no elenco, nada mais, nada menos do que Ruth de Souza (1921-2019), Léa Garcia, Milton Gonçalves, Zózimo Bulbul e Jonas Bloch, além de Maria Ceiça, Rocco Pitanga, Thalma de Freitas e Taís Araújo e grande elenco.
Tudo funciona perfeitamente de modo que a humanidade de cada personagem possa se sobressair. A luz, a música, os sons da natureza, os suspiros e os olhares.
A história começa e termina em uma cidade pequena de Minas Gerais e, pelas circunstâncias e escolhas da vida, duas irmãs, Cida e Ju, interpretadas na primeira fase, por Taís Araújo e Thalma de Freitas, respectivamente, se separam.
É simplesmente impossível não sentir o oceano de emoções quando as irmãs, agora interpretadas por Ruth de Souza (Cida) e Léa Garcia (Ju), se encontram no velório do pai, Zé das Bicicletas (Milton Gonçalves).
Em 2016, a revista Raça publicou a sinopse da obra e afirmou que “de forma perspicaz, o diretor Joelzito Araújo coloca como pano de fundo desta história os fantasmas do racismo e da escravidão em diversos personagens. Ele se orgulha de ter o maior elenco negro em um filme brasileiro. […] depois de vencer a mostra intitulada Premier do Filme Brasileiro, promovida pelo MoMa (famoso Museu de Arte Moderna dos EUA), recebeu ótimas críticas do jornal The New York Times, que o colocou entre os melhores filmes do ano. É, sem dúvidas, um filme brilhante, com personagens ricos e bem explorados”.
Cinco anos depois, o filme segue entre aqueles que a Raça Indica. Primeiro, por sua beleza, delicadeza e complexidade. E, segundo, pela capacidade de reunir em 1 hora e 25 minutos um espetáculo de interpretação de um elenco majoritariamente negro.
Quarto de Despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus
“Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas, o custo dos generos alimenticios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente, somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar”.
Poderia ser o trecho de um diário de qualquer pessoa pobre nos dias de hoje. Mas não é. São as primeiras linhas do livro Quarto de Despejo (1960) de Carolina Maria de Jesus e remontam ao dia 15 de julho de 1955, quando ela planejava ou sonhava comprar sapatos novos para a sua filha Vera Eunice.
Eu li a 9a edição, publicada em 2012 pela Editora Ática, que garante que o texto ficcional desta obra é o mesmo das edições anteriores.
“Quarto de Despejo: diário de uma favelada” traz as memórias de Carolina Maria de Jesus, que antes de ser escritora publicada resolveu escrever o seu dia a dia. Com algumas lacunas entre os anos, ela descreve o seu cotidiano entre 1955 e 1960. São anos de relatos de sobrevivência, de denúncia, de trabalho pesado e também de esperança.
Os relatos disponibilizados no livro, na maioria das vezes, não passam de um parágrafo. Mas não faltam queixas sobre o preço dos alimentos, da oferta de álcool na favela, sobre a falta de água, saneamento e dos movimentos de desapropriação, apropriação e despejo a que as pessoas pobres e faveladas estão sujeitas frequentemente.
Quarto de Despejo é um clássico da literatura brasileira. É envolvente e infelizmente uma crônica dos dias de hoje.
Carolina Maria de Jesus (1914-1977) está entre as principais escritoras brasileiras. Além de “Quarto de Despejo”, que foi traduzido em mais de dez idiomas, ela também publicou em vida: Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961) e Pedaços da Fome (1963). Após sua morte, quatro outros livros foram publicados: Diário de Bitita (1986); Meu estranho diário (1996); Antologia pessoal (1996) e Onde estaes felicidade? (2014).
A Biblioteca Nacional mantém a Coleção Carolina Maria de Jesus com escritos da autora. São 14 cadernos, 22 fotos e 10 microfilmes. É possível ler os relatos manuscritos por elaclicando aqui.
Poetas do Sarau Suburbano vol. 2, de Alessandro Buzo
Como aqui em casa os livros ficam organizados por afinidade ou porque acho que eles se sentiriam bem se próximos, na mesma fileira que guardo o “Quarto de Despejo” está a antologia de poemas e rimas organizada por Alessandro Buzo, com textos de Akins Kinte, Camila Freitas, Carolina Peixoto, James Lino, Lindomar 3L, Mel Duarte, Rincon Sapiência, Ruivo Lopes, Sacolinha, Tubarão Dulixo e Zinho Trindade, entre tantas outras pessoas que já tive a oportunidade de ouvir declamando e cantando.
O livro, publicado em 2013 pelo selo Edições Suburbano Convicto e pela EDICON, traz 58 textos organizados em ordem alfabética que relatam por diferentes perspectivas o dia a dia da cidade de São Paulo, das saudades de outros lugares, dos desafios das quebradas, favelas, periferias. Que pulverizam amor, esperança e resiliência.
Ainda nas primeiras páginas, no penúltimo verso do poema “Meus Olhos”, Camila de Freitas diz:
Hoje meus olhos estão marejados de lágrimas Pelos índios vendidos Pelos trabalhadores escravizados Pelos negros marginalizados.
Na última página, no último verso, Zinho Trindade exclama:
Não fique se iludindo por um simples momento O baguio é louco, tem que tá atento O ponteiro do relógio um dia vai parar Mais nóis damos a corda e voltamos a andar
O livro é resultado de um projeto maior denominado II Festival Literário Suburbano Convicto realizado em janeiro de 2013 na cidade de São Paulo. Mais informações: https://www.instagram.com/alessandrobuzo/
Jornalista com experiência em gestão, relações públicas e promoção da equidade de gênero e raça. Trabalhou na imprensa, governo, sociedade civil, iniciativa privada e organismos internacionais. Está a frente do canal "Negra Percepção" no YouTube e é autora do livro 'Negra percepção: sobre mim e nós na pandemia'.