Racismo, territorialidade, colorismo e os privilégios da branquitude Eclesiástica

O racismo é também narrativa territorial! Ocultar corpos pretos (invisibilidade),fixá-los em subalternidades e interceptar mobilidades faz parte do projeto genocida/colonizador/escravocrata, de ontem e de hoje, dentro e fora da Igreja.

Por isso indago acerca da territorialidade: onde estão localizados os párocos negros?

Afora questões de ordem teológico-espiritual, ser pároco implica exercício de poder; logo, é campo de disputa, quer confessemos ou não. Nos bastidores da Igreja, sabemos que há paróquias disputadas (paróquia-prêmio) e paróquias preteridas (paróquia-castigo) ou, ainda sob a lógica do poder e do prestígio: paróquia-céu, paróquia-purgatório, e paróquia-inferno.

Desse modo, há silenciosas e não confessadas questões entre ser designado, na condição de pároco, para uma paróquia da zona sul do Rio (Leblon, Ipanema, Urca, Copacabana, por exemplo) ou ser designado para a zona oeste ou para uma paróquia qualquer dentro de uma favela.

Creio não ser necessário grandes explicações para se ter uma mínima noção do valor, do poder representativo e das disputas em torno da territorialidade.

Não basta, pois, aos párocos negros reivindicarmos “missas afro”; reivindicação legítima. Urge reivindicarmos, entre outros direitos, territórios e representatividade em quaisquer zonas da cidade. Salvo engano, é de autoria do filósofo Ludwig Wittgenstein a instigadora frase: “não pergunte; olhe”. Olhar ou ver , “coisa complicada”, segundo o pedagogo Rubens Alves, é habilidade necessária para lermos e deciframos o mundo e seus variados mecanismos de construção e manutenção do racismo estrutural e institucional, inclusive o eclesiástico.

Desse modo, este breve escrito nascido no contexto do “Dia do Padre” (04/08) tem como finalidade confessada o desejo de instigar os olhos. Certa feita, perguntou Jesus a um cego: “o que queres que te faça?”. Ele respondeu, sem demora: “ver”. E ver, segundo Achille Mbembe, na obra “Crítica da razão negra, “ não é a mesma coisa que olhar”. Ver ou não ver, eis a questão! Escreve Mbembe que “na colônia é soberano o que decide quem é visível e quem deve permanecer invisível”.

O poder colonial escravista, de ontem e de hoje, busca produzir o negro como coisa não vista – invisível – isto é, inexistente (colonialidade do ser). A violência do racismo se dá não apenas quando se extermina o corpo, como o da jovem Kathlen Romeu, mas quando nega ao negro ou a negra a possibilidade de existir; ou melhor, coexistir, ser uma pessoa entre outras pessoas, um ser entre outros seres.

Escreve o psiquiatra martinicano Frantz Fanon: “Queria simplesmente ser um homem entre outros homens”. É, pois, operação crudelíssima do racismo brasileiro, “crime perfeito”, nas palavras de Kabengele Munanga, negar a coexistência.

Nesse horizonte, o poder da colonialidade racista de brancura busca fazer que os negros sejam fixados e vistos nos espaços, territórios ou funções sem valor social ( presídios, favelas, trabalhos servis, etc), alijando-os dos espaços de glamour e de poder.

Por que todos os padres famosos e midiáticos são brancos? É nesse horizonte que nasce a pergunta pela localização dos párocos negros nas paróquias do Brasil.

Se há párocos negros em zonas privilegiadas no tecido diocesano, pensando a partir da noção de colorismo, artefato do racismo, que hierarquiza e valoriza os negros segundo a tonalidade de suas peles e traços negroides, podemos perguntar ainda: qual é a pigmentação da pele dos párocos negros e quais são os seus traços fenotípicos?

Segundo a ótica do colorismo, quanto mais pigmentada for a cor da pele e quanto mais traços africanos tiver o sujeito negro, maior o nível de discriminação e exclusão. Escreve Aline Djokic: “ O colorismo funciona como um sistemas de favores, no qual a branquitude permite a presença de sujeitos negros com identificação maior de traços físicos mais próximos do europeu…”.

Há párocos pretos retintos nas zonas privilegiadas da cidade? Então, dentro da artimanha perversa do colorismo, clérigos negros (com a pele mais clara e menos traços negroides) tem mais chances de ingressar no episcopado, no magistério e no exercício do poder nas paróquias.

Podemos, pois, falar de um “colorismo eclesiastico”, segundo o qual,quanto mais preto mais fora ( mais apartado) e quanto “ menos preto” mais ( tolerantemente) dentro das zonas privilegiadas de poder.

Mas esse mecanismo, vale dizer, se ancora no racismo e suas construções diabólicas, isto é , que segrega; que divide ( brancos x negros e negros x negros).

Considero o colorismo, termo alcunhado pela escritora Alice Walker e nome da obra de Alessandra Devulsky (Feminismos plurais), tema de envergadura para se pensar o racismo na sociedade brasileiras ( e também na Igreja) e suas sinistras artimanhas.

Trago, como padre-pároco preto, neste dia 4 de agosto , dia do padre, como contribuição `a pauta antirracista no âmbito eclesial, mais perguntas que respostas…

Desejo, sinceramente, que tais perguntas produzam um ver que, como já expus, difere do olhar. Desejo, pois, suscitar, neste dia do padre, um ver crítico, sincero, evangélico, engajado e descolonizado – um ver antirracista!

Os territórios falam e também denunciam… todos os negros, independente da pigmentação da pele, somos vítimas, em maior ou menor grau, do racismo. Mas, quando falo em pároco negro retinto, estou falando do Negão.

A propósito, onde estão eles ( os negões) no papado, no episcopado, nas lideranças das paróquias, no magistério e nos notáveis postos de decisão?

Ao que parece, há uma Lei ou cerca social (e também eclesial): quanto mais preto, mais longe…

Eis porque, como Aimé Cesaire, falo “de milhões de homens em quem deliberadamente inculcaram o medo, o complexo de inferioridade, o tremor, a prostração, o desespero, o servilismo”.

E cabe aos párocos brancos, sobretudo os localizados nas zonas abastadas e privilegiadas das dioceses, repensarem seus privilégios, que em nada diferem dos históricos e mundanos privilégios dos filhos e filhas da branquitude colonial/escravista do Brasil.

Meu escrito reivindica mobilidades e aparecimento – epifania preta!

Não lutamos por exclusividade, mas por alteridade – ser com os outros. Está escrito na introdução da obra “Pele negra, máscaras brancas”, de Frantz Fanon: “A liberdade requer um mundo de outros”.

Mas é o racismo estrutural e institucional que nos obriga sair de casa para afirmarmos nossa existência. Alerta o próprio Fanon: “Enquanto o negro estiver em casa não precisará, salvo por ocasião de pequenas lutas intestinais, confirmar seu ser diante de um outro”.

Vale, pois, dizer que, a meu juízo, serve, sem tirar nem por, acerca da localização ( territorialidade) dos párocos pretos nas paróquias das dioceses do Brasil as potentes, certeiras e desconcertantes palavras da pretinhosa poeta Elisa Lucinda: “se tem territorialidade, tem apartheid. Se eu sei onde encontrar [pároco] preto e onde encontrar [pároco] branco, tem apartheid, caralho…

A gente fica fingindo que não vê… Tem uma cegueira!”. Grifos nossos! Urge desnaturalizar a ausência preta – a ocultação dos corpos!

Meu interesse confessado é repercutir a necessidade de se investigar e pensar a existência ou não do racismo eclesiástico a partir das localizações e mobilidades dos corpos negros nas dioceses do Brasil, partindo do questionamento acerca dos lugares em que os párocos negros estão situados.

Desse interesse brotam perguntas necessárias:

quantos padres negros tem a diocese?

Quantos são párocos e quantos não são?

Se não o são, vale indagar: por quê?

E os que são párocos, onde estão localizados e por que?

Qual é a cor dos párocos nos territórios elitizados da diocese?

As dioceses exigem um nível de formação diferenciada (doutorado, por exemplo) para que padres negros assumam paróquias de destaque?

São as mesmíssimas exigências do poder diocesano para os padres negros e os brancos?

A distribuição dos párocos no tecido diocesano nas zonas privilegiadas da cidade reverbera os privilégios da branquitude?

Onde, pois, estão localizados os párocos negros,de modo especial, os mais escuros ou retintos?

Por fim, escrevo, sobretudo, pensando nas dioceses do Brasil cujos territórios foram (e são) fortemente marcados pela presença negra que, a propósito, o projeto colonial de brancura quis de todas as formas extinguir e ocultar;

Escrevo para as dioceses que, desejam ser fieis ao Episcopado latino-americano e caribenho que, na V Conferencia, escreveu (no Documento de Aparecida) ser urgente o processo de “descolonização das mentes”; escrevo, pois, pensando em dioceses que, como o Papa Francisco, sejam capazes de conceber o racismo como intolerável e como, também nas palavras do papa, compreendam o racismo como “um vírus que se transforma facilmente e, em vez de desaparecer, se esconde; mas está sempre à espreita”. E diz ainda Francisco: “As manifestações de racismo renovam em nós a vergonha”. Por isso, no marco do axé papal, escrevo, como diz Grada Kilomba, para descolonizar e como ensina Conceição Evaristo, a Mater Generosa das Letras Pretas, “para acordar os da casa grande de seus sonos injustos”.

Então, no sopro antirracista do Espírito”, conforme sustenta o teólogo Ronilso Pacheco, e inspirado ainda na poeta Elisa Lucinda, se for constatado justiça racial entre os párocos pretos e brancos em paróquias localizadas em territórios privilegiados das dioceses, louvado seja o Espírito antirracista de Deus.

Entretanto, se confirmado for o privilégio branco na distribuição das paróquias em zonas privilegiadas da cidade, as dioceses, e seus respectivos bispos, estarão diante de uma gravíssima, intransferível e pública opção: ou trabalharão, de verdade, pela justiça racial e pela representatividade negra ou serão mantenedores e patrocinadores do histórico privilégio branco.

Em outros termos, ou serão abolicionistas (antirracistas) ou escravocratas.

Padre Gege
Arquidiocese do Rio de Janeiro.

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