Por Eliane Pereira da Silva*
O racismo de fato, conforme leciona Kabengele Munanga, é um crime perfeito. Ele se infiltra nas estruturas, nas relações e na psique, moldando subjetividades de forma tão profunda que seus efeitos, muitas vezes, sequer são percebidos como violência.
Sob o magistério de Lélia Gonzalez, falar em primeira pessoa é um ato político e epistemológico e, como mulher negra, escrevo aqui sobre algo que vivenciei em um momento de lazer, especificamente em um pagode na periferia do Rio de Janeiro. Um homem negro retinto, após me observar, elogiar minha elegância e manter contato visual, disse: “Eu não gosto de mulher preta. Minha mulher é branca.”
Sua fala tem muitas camadas e uma delas é a presença do racismo como força estruturante da subjetividade negra. Aquele homem, em sua alienação, consciente ou não, projeta sobre mim, mulher negra, a dor e a raiva da própria condição subjugada.
O amor, o desejo e a intimidade não escapam ao colonialismo. A maneira como os corpos se aproximam, se amam ou se repelem está marcada por séculos de dominação racial, sexual e de classe.
Em Pele Negra, Máscaras Brancas (1952), Frantz Fanon denuncia esse mecanismo: o homem negro colonizado internaliza os valores do colonizador, desejando aquilo que o oprime, como a cultura, a linguagem, os corpos brancos. Ele afirma: “O negro não é um homem. Há uma zona de não-ser que é preciso atravessar para então lutar para se tornar”. Nesse percurso, o corpo da mulher branca torna-se, para o homem negro, um símbolo de elevação, de pertencimento à humanidade negada. Ser desejado por ela é ser reconhecido, validado. Trata-se do que Fanon chama de desejo colonizado, que, em busca de redenção, alimenta a negação de si e, especialmente, da mulher negra.
As relações inter-raciais são complexas. Não se trata de demonizá-las, mas de problematizar os sentidos coloniais que muitas vezes as estruturam. Quando o homem negro busca a mulher branca para “melhorar a raça”, “subir na vida” ou fugir das dores associadas à sua origem, ele repete o script colonial. O afeto se converte em projeto de branqueamento simbólico.
É nesse ponto que a endogamia se apresenta como uma questão-chave. A ausência de práticas endogâmicas entre pessoas negras, ou melhor, a recusa simbólica de amar, desejar e construir afetos com outras pessoas negras é também uma das faces do racismo internalizado. Em contextos de grupos historicamente oprimidos, a endogamia pode ser não apenas uma prática cultural, mas uma estratégia de afirmação, de reconstrução de autoestima coletiva, de resistência à lógica de exclusão. Quando homens negros evitam mulheres negras como parceiras afetivas – como no caso por mim vivenciado não apenas reproduzem o colonialismo nos desejos, como também rompem os laços de solidariedade racial que sustentam a luta por libertação.
Kimberlé Crenshaw, com o conceito de interseccionalidade, nos oferece uma lente poderosa. Gênero, raça e classe se entrelaçam para excluir sistematicamente a mulher negra, inclusive dentro das próprias comunidades negras. A fala daquele homem negro dizia mais sobre ele do que sobre mim. Estava ali, em paz, linda, sorridente e acompanhada de um homem negro. Mas ainda assim, minha existência causou incômodo no meu interlocutor.
A nossa libertação, percebo, será longa e árdua, especialmente no campo psíquico, onde se forjam os afetos e se perpetuam as exclusões. Descolonizar o desejo é um dos maiores desafios contemporâneos da diáspora negra. E isso implica reconstruir nossas referências afetivas, reeducar nosso olhar sobre nós mesmas e sobre o outro. Passa também por reconhecer que pessoas negras precisam atravessar um processo de cura que as liberte das amarras do desejo colonizado e das dores herdadas da escravidão. É preciso reconstruir práticas de afeto que valorizem a endogamia como gesto político e amoroso, como afirmação de que somos dignos de amar e de sermos amados por nós mesmos. Quem sabe, assim, possamos amar e ser amadas/os sem reproduzir a lógica do opressor.