Refazendo tudo
A natureza do racismo desenvolvida ao longo do tempo no Brasil merece muito mais que estudos acurados, pois se constitui no mais bem acabado sistema de discriminação já produzido no mundo ocidental pós-colonial. O Brasil é o único país do mundo onde não existem brancos, nem negros, segundo o discurso oficial, mas que existe um sistema que favorece absurdamente os brancos e criminaliza na essência tudo que tem origem negra ou indígena, em particular seus corpos. É o sonho dos sonhos para os racistas do mundo – o racismo sem racistas.
Ou seja, se é verdade para o mundo da política que o Brasil não é coisa para amadores, no campo racial muito menos ainda. Combater o racismo no Brasil demanda e exige conhecimento, astúcia, informação e sobretudo habilidade, pois ele está de tal forma entranhado no fazer cultural brasileiro que se não houver o devido cuidado por parte dos antirracistas no seu enfrentamento o tiro pode sair literalmente pela culatra.
Abordo esta questão neste momento, por considerar que a barafunda política, econômica, ética e social em que o país está envolvido é de tal magnitude que pode oferecer janelas de oportunidades para refazermos, não apenas nossas práticas, no campo ético-moral-político, mas sobretudo no campo das ideias. Neste sentido, é importante atentar para o viés absolutamente conservador das soluções apresentadas, no campo da política, onde a estigmatização dos políticos e da política, parece ser o único caminho encontrado até agora para a purgação dos erros cometidos.
Não é à toa, que tudo aquilo que representa avanço social no campo de gênero, racial, lgbt, educacional e religioso está sob forte e cerrado tiroteio visando sua desconstrução, reconfiguração e retrocesso. Os remédios ministrados são todos amargos: no campo de gênero – as mulheres e em particular seu corpo devem ser dominados e sacralizados. No campo racial – o Brasil é dos brasileiros e quem discordar ou denuncia o racismo, que volte para a África, pois racismo é mi mi mi e aqui não há lugar para isto. Para os homossexuais – violência, morte e o fogo dos infernos. Para a religiosidade – o néo-pentecostalismo é a solução, o resto é coisa do demônio e que necessita ser urgentemente exorcizado, pouco importando se liberdade religiosa é um direito constitucional ou não.
Nessa torre de babel conservadora, o movimento negro precisa urgentemente se reorientar, não apenas para sobreviver e/ou resisitr a onda conservadora que varre o país, mas para oferecer alternativas para si e para a sociedade como um todo. Neste sentido, racialização e gueto é tudo aquilo que não nos interessa. Até porque, se desejamos realizar o sonho da igualdade, necessariamente teremos que dialogar com o outro, e mais do que nunca com o nosso diferente. E creio que temos musculatura para enfrentarmos este desafio.
A experiência acumulada pela população negra, (cheia de iniquidades, exclusões e crueldades), aliada ao exercício mais recente das políticas de ações afirmativas, notadamente no campo educacional, indica com alguma clareza os caminhos a serem seguidos. O enorme contingente pós-cotas (mais de 600 mil jovens) que adentrarão o mercado de trabalho em breve, deve ser nosso alvo preferencial. Se juntarmos esse potencial com os setores progressistas e antirracistas da nossa sociedade, teremos o caldo de cultura e força necessária para avançarmos.
Neste sentido, apresentar e articular propostas que assegurem a liberdade religiosa (plena), a educação e proteção das crianças, (em particular as de origem pobre e negra), o respeito a diversidade cultural, religiosa e sexual como condição de humanidade, a inclusão econômica e a democracia enquanto valor universal, já teríamos um bom recomeço.
Toca a zabumba que a terra é nossa!
Zulu Araujo
Foi Presidente da Fundação Palmares, atualmente é presidente da Fundação Pedro Calmon – Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.
*Este artigo reflete as opiniões do autor. A Revista Raça não se responsabiliza e não pode ser responsabilizada pelos conceitos ou opiniões de nossos colunistas