Poderia tratar do impressionante tsunami do capital imobiliário, a varrer vestígios da velha Salvador. Resisto. Minha intenção é falar apenas do Candomblé da Casa Branca, considerado o mais antigo terreiro do Brasil. Se parto do amigo, companheiro de prisão, notável pesquisador Renato da Silveira, a Casa Branca teria nascido lado a lado com a Revolução Francesa, em 1789. Na Barroquinha, primeiro terreiro Keto. Percorri as 650 páginas de livro dele, “O candomblém da Barroquinha: processo de constituição do primeiro terreiro baiano de Keto” no decorrer da pandemia. Queiram conhecer origens, mergulhem.
Vou falar do hoje. Lembrar o ano de 2019, quando o terreiro da Casa Branca foi invadido: um policial militar compra um imóvel na parte superior do templo sagrado do Orixá Omolu. E começa a erguer um prédio, sem qualquer licença dos órgãos competentes. Naquele ano mesmo, a casa religiosa, envia ofício ao Iphan, assinado pela EkedeSinha, comunicando a invasão, a remoção do gradil, de plantas e árvores sagradas ao lado da Casa de Omolu, tudo como decorrência daquela construção irregular.
O Iphan, restou silencioso, favorecido pela pandemia. Em 2021, filha de santo da casa apresenta denúncia ao Ministério Público Estadual, e disso decorre um inquérito civil para apurar o caso. Seguiram-se palestras, encontros, seminários, parcerias com a Universidade Federal da Bahia, com a Universidade Católica, tudo girando em torno da invasão, do racismo ambiental, procurando garantir a proteção do território da Casa Branca. E o monstrengo continuava a subir, ameaçador.
Estive num encontro da Casa Branca em março de 2023, eu e minha querida companheira Carla França, já acometida de um câncer, a provocar a partida definitiva dela em agosto do ano seguinte. Reunião sobre racismo ambiental. Soube então da invasão.
Botei a boca no mundo. Escrevi sobre o absurdo. Fiz barulho. Depois do escândalo feito por mim, autoridades começaram a se mexer diante do monstrengo, já um prédio de cinco andares, a servir como casa de festas, igreja evangélica, pizzaria, quartos para moradia, diabo a quatro. O policial agia como se ali fosse casa de Mãe Joana, impune.
Na verdade, desde o início dos anos 2000, o terreiro vinha reclamando ao Iphan de invasões do território sagrado, sem quaisquer providências. Em 2024, e para tanto aconteceu a interferência direta do conselheiro do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado da Bahia, Nelson Pelegrino, amigo da casa, como eu, a prefeitura de Salvador agiu. O imóvel foi desapropriado, a área foi incorporada ao terreiro, o monstrengo foi ao chão. Até agora, final feliz.
Mas a história não termina aqui. Terreiro da Casa Branca vive sob cerco. Como todas as casas da religião afrodescendente espalhadas por todo o território da capital baiana. Naquela região da cidade, a compreender o Engenho Velho de Federação, convivem outras tantas instituições religiosas do povo de santo, como o Ilê Axé Oxumaré, Terreiro do Bogun, Ilê Axé Lajoumin, Terreiro do Cobre, Terreiro Tanuri Junçara, Unzo Onimboia, Terreiro Tumba Junçara.
Todas elas, casas de muito respeito e tradição. E acossadas, sempre, por invasões, por desrespeitos. A Casa Grande não se conforma com a persistência do candomblé, um milagre da persistência do povo negro, a subsistir sob a formação social escravista, em meio a impressionantes rebeliões e ao “heroísmo prosaico de cada dia”. E o pensamento conservador se vale, hoje, de religiões neopentecostais, desacostumadas até aqui a conviverpacificamente com o candomblé. Às vezes, se defronta com o crime organizado e com a polícia. Vida dura.
Quero saudar essa vitória do Terreiro da Casa Branca. Saudar Mãe Neuza. Saudar Ekede Sinha. Ekede Isaura Genoveva. Todas queridas amigas, autoridades religiosas respeitadas. E sugerir o desenvolvimento de uma política pública capaz de proteger os territórios sagrados do candomblé. Poderia começar com um grande encontro dos terreiros do Engenho Velho de Federação, a estimular união entre eles, e assegurar respeito àquelas tantas casas sagradas da região, política a se estender a tantas outras áreas da Cidade da Bahia.
Axé.