REVOLUÇÃO NAS TELAS E NA VIDA
Por: Hamalli Alcântara
Sheila Walker, em entrevista exclusiva à RAÇA, fala do filme A MULHER REI, do compromisso com a história não contada e da importância de Viola Davis protagonizando a heroína negra que abala Hollywood
ENFIM, GUERREIRAS NEGRAS NO CINEMA. COMO SE SENTE?
Para nós a reação foi muito positiva, porque, pela primeira vez, uma imagem tão positiva de mulheres africanas chega aos cinemas do mundo todo e o mais interessante é que é uma história verdadeira das guerreiras do Reino de Daomé. Eu fui ao Reino de Daomé há muito tempo, então conheço um pouco. É uma realidade para mim, não é uma ficção. É uma história de fundo verdadeira, é uma história muito importante. É ficcionalizado, porque não é um documentário, é baseado em uma realidade do Reino de Daomé, no começo do século 19. Sou feliz de ter a oportunidade de conhecer um pouco essa história, fez todo sentido, houve muitos lugares que passei e pensei, ‘ah, eu conheço isso aqui’.
COMO ERAM AS EXPECTATIVAS EM TORNO DESSA MEGAPRODUÇÃO?
Diziam que um filme com tantas negras não iria ganhar dinheiro. Fez 20 milhões de dólares em um fim de semana. Teve também uma reação negativa, e acho que sobretudo de afro-americanos que não conhecem a história. Achavam que seria um filme horrível por retratar a colaboração dos africanos na escravização. Sim, isso é parte da história, mas na essência fala do Reino de Daomé, que era um reino escravocrata.
Mas, há outras perspectivas do filme que mostram muito bem as dinâmicas desse momento. O momento que o Reino de Daomé estava vivendo. As pessoas que criticam, por exemplo, não dizem nada do Reino de Oyo, importantíssimo no filme, o conflito básico que criou o problema da escravidão organizada pelo Reino de Daomé. Oyo tinha mais poder que Daomé. Oyo exigia tributos dos daomeanos e a nossa heroína, Nanisca (Viola Davis), diz ao rei de Daomé que não entregarão mais pessoas para que Oyo as escravize. No lugar, ofereceu azeite de palmeira, mas Oyo recusou, eles queriam escravizados. Por isso invadiu o reino de Daomé.
UM CONFLITO DESIGUAL, NÃO É? NESSE ASPECTO AS GUERREIRAS ASSUMEM O PROTAGONISMO.
Exatamente. O Reino de Oyo tinha cavalos como arma de guerra, além de armas de fogo, armamento europeu. As guerreiras tinham apenas a coragem e seus bastões. Oyo tinha mais poder bélico que Daomé, por isso exigia tributos, traficava pessoas e exercia toda essa opressão. Por isso é fundamental compreender o contexto antes de criticar. Vale refletir a respeito e expandir esse olhar. O que sabemos das Américas? O que sabemos? Sabemos Oyo e Daomé tiveram seus povos escravizados e isso motivou, de certa forma, o conflito entre eles, mas a motivação, sem dúvidas, veio doexterior, porque de onde vieram as armas de fogo? Os europeus armaram os Oyo contra os Daomé. Então Daomé estava lutando pela vida, pela existência.
NÃO MUITO DIFERENTE DO QUE ACONTECEU AO LONGO DA HISTÓRIA E QUE, INFELIZMENTE, AINDA VEMOS NOS DIAS ATUAIS.
Isso. É o que representa e ainda ecoa a voz de Nanisca: temos que viver, temos que resistir e atacar, se necessário for. Temos que ficar fortes, não queremos vender mais nenhum irmão aos europeus e nem ao reino de Oyo. Nanisca representa uma atitude contra a escravidão, contra a opressão e exploração dos africanos e de seu continente.
TRATA-SE DE UM FILME REVOLUCIONÁRIO, NA SUA OPINIÃO?
Olha, as Américas não seriam o que são hoje se não fosse esse conflito. Muitas pessoas viajaram para cá, vieram construir as Américas por conta desse conflito. Nesse sentido, se não o filme, a narrativa dele é revolucionária, uma vez que se propõe a contar a história pouco conhecida. Mas uma das coisas realmente revolucionárias do filme é a presença dessas mulheres negras, pretas retintas. É uma revolução, e foi a base de muito conflito. Em uma entrevista com Viola Davis, ela disse que as pessoas que financiaram o filme, disseram que filmes com mulheres negras não poderia ter esse tom, que o público não iria gostar, sobretudo as mulheres negras. Alegavam que estávamos esperando algo positivo sobre a nossa gente.
Parece que essas mesmas pessoas com dinheiro para financiar um filme de homens brancos, sugeriram mulheres um pouco mais claras, um pouco mais bonitas… A resposta foi um sonoro NÃO!
É a África. Assim é a África. Com essas mulheres bonitas, fortes, guerreiras. Essa imagem da mulher negra, preta, retinta e forte é revolucionária e muito positiva. É o que nós precisávamos. Todos precisávamos. É uma realidade. O filme Pantera Negra abriu a porta para a possibilidade de mostrar essas mulheres.
QUAL A REAÇÃO ATÉ AGORA DA INSDÚSTRIA DO CINEMA AO FILME?
Tem visto com muita surpresa. Veja quantos milhões arreca- dou em um fim de semana. A base dessa indústria é dinhei- ro. Então se o filme faz dinheiro, a indústria gosta. Eu acho que a última vez que houve esse período de filme sobre nós, era o que se chamava blaxploitation, a exploração da imagem dos afro-descentes. Tinham vários filmes no começo dos anos 1970 sobre nós, mas a imagem era de vendedores de drogas, carros caros, roupas chiques e do outro lado da lei, imagens bastante negativas de nós, por isso blaxploitation. Mas nós afro-americanos, estamos sempre tendo vontade de ver mais imagens da gente, mesmo se não tão positivas. Depois de Pantera Negra, deu muito dinheiro, a indústria vai querer mais filmes sobre nós.
VIOLA DAVIS TAMBÉM TRAZ UM PESO ENORME AO FILME.
Fundamental a presença dela. A vida de Viola Davis, desde criança, já é um testemunho pelas dificuldades que ela viveu. Isso a legitima por demais para assumir o papel de Nanisca. É a vida dela em grande escala. A personagem de Viola foi escravizada pelo rei de Oyo e vítima de abuso sexual pelo Rei e seus homens. Há uma intersecção forte entre a história dela e a história de Nanisca, que resiste e impede que sua filha passe pelas mesmas dores, sofra a mesma opressão. Viola e Nanisca são símbolos fortes de mulheres pretas retintas, o que é maravilhoso para nós, porque, normalmente, não vemos essa imagem da gente. Agora vemos, graças a Viola Davis. É maravilhoso como já abriu, escancarou a porta, que continuará aberta. Agora esperamos WAKANDA FOREVER – Pantera Negra 2, com uma rainha e outras mulheres negras fortes e poderosas.