No coração do Julho das Pretas, mais de 300 mulheres negras do Rio Grande do Sul receberão um dos mais significativos reconhecimentos públicos de suas trajetórias. A Medalha Preta Roza, iniciativa da deputada Laura Sito, transcende a mera condecoração para se tornar um gesto político de reescrita da história. Batizada em homenagem à guerreira quilombola que atuou no século XIX – disfarçando-se de homem para infiltrar-se em espaços de poder –, a honraria conecta o passado de resistência com o presente de lutas em áreas como política, saúde e cultura.
A cerimônia principal em Porto Alegre no dia 23 de julho, seguida por ato em Pelotas, transforma o Auditório do Ministério Público em palco para uma reparação simbólica que abrange mais de 50 cidades gaúchas. O critério de seleção das homenageadas revela a potência da iniciativa: foram priorizadas mulheres que, como a própria Preta Roza, atuam nos bastidores da transformação social – professoras, agentes comunitárias, pesquisadoras e lideranças locais cujos nomes raramente ocupam manchetes.
Laura Sito articula com a medalha um duplo movimento: ao mesmo tempo que resgata figuras históricas silenciadas, como a quilombola que nomeia a honraria, joga luz sobre contemporâneas que reinventam diariamente a resistência. “Dar visibilidade a essas trajetórias é mostrar que o RS tem outras referências de heroísmo além das oficiais”, afirma a deputada, em clara alusão ao imaginário tradicional gaúcho, historicamente branco e masculino.
O timing do evento não é casual. Ao vincular a entrega ao 25 de julho – Dia da Mulher Negra Latino-Americana –, a iniciativa insere o Rio Grande do Sul num debate continental sobre memória e representação. Os números impressionam: 300 medalhas equivalem a quase uma para cada dia do ano, propositalmente excedendo a lógica tradicional de premiações individuais para criar um reconhecimento coletivo.
Analistas percebem na iniciativa um modelo inovador de política simbólica. Mais do que distribuir medalhas, o projeto mapeia e conecta uma rede subterrânea de ativismo negro feminino no estado, oferecendo pela primeira vez um panorama dessa atuação dispersa. Como observa Sito, citando Angela Davis, a homenagem explicita como o movimento dessas mulheres já move estruturas – faltava apenas que a sociedade oficial as visse.
Ao eleger Preta Roza como símbolo, a medalha opera ainda um revisionismo histórico necessário: prova que o sul do país, frequentemente associado apenas ao legado europeu, foi também palco de heroísmos negros e femininos. Neste Julho das Pretas, as 300 condecoradas herdam o manto da guerreira quilombola – e confirmam que sua estratégia de resistência, quatro séculos depois, segue mais viva do que nunca.