Revista Raça Brasil

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Sangue no asfalto

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Emiliano José

Paulista radicado na Bahia, jornalista, escritor, e imortal da Academia de Letras da Bahia. Formado em Comunicação, Mestre e Doutor. Tem histórica militância política, desde o combate à ditadura militar (1964-1985), como integrante da Ação Popular (AP), passando pelo exercício de mandatos como deputado estadual pelo PMDB-BA (1988-1989), vereador de Salvador pelo PT-BA (2000-2002), deputado estadual (PT-BA) de 2003 a 2005, e deputado federal também pelo PT de 2009 a 2011. Elegeu a defesa das religiões de matriz africana como prioridade e presidiu a Comissão Especial para Assuntos da Comunidade Afrodescendente (CECAD) da Assembleia Legislativa da Bahia (2003 e 2004).

Estamos habituados a ouvir sobre a brutal mudança das relações de trabalho no mundo e no Brasil, decorrente do neoliberalismo, circunstância rigorosamente mantida na clandestinidade pela grande mídia, por razões óbvias. Pouco se fala sobre o quanto essa nova razão do mundo, como diriam Pierre Dardot e Christian Laval, traz de implicações para as relações trabalhistas, advindas sobretudo dos aplicativos, quase a ressuscitar o trabalho escravo, especialmente nas grandes metrópoles.

Vou aos motoboys e bikeboys, esses desamparados, deserdados. Deparei esses dias com uma fala muito forte do novo presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Luiz Philipe Vieira de Mello Filho, cujas posições arrojadas, progressistas prometem dar trabalho a quem pretenda continuar nessa sanha de destruição dos direitos trabalhistas. Vieira de Mello Filho apontava um número assustador de mortes de motoboys no trânsito: 13477 motociclistas tombaram nas ruas do Brasil em 2024.

Não confirmei o número dado pelo ministro, presidente do TST desde setembro deste ano. Difícil, no entanto, não tenha Vieira de Mello Filho tomado algum cuidado ao anunciar essa matança. Eles, os motoboys e os bikeboys saem de casa a cada dia como se fossem para uma guerra. De alguma forma, uma guerra. O ministro chega a compará-la a Gaza – arriscada comparação. São coisas diferentes. Inegável, no entanto, o risco corrido por eles ao serem obrigados a satisfazerem os apetites do capital. Vidas à beira do abismo, maioria certamente negra.

Submetidas não só à superexploração, à chuva, ao sol, como, também, aos preconceitos, ao racismo. Não há dia onde não haja notícia de alguma violência contra um entregador de aplicativo, o consumidor irritado porque o motoboy não quis atender ao capricho dele, de por exemplo, subir e entregar o produto à porta. Racismo, ecos da escravidão. A Casa Grande, de chicote na mão. Sente-se ainda nesse direito.

O capital não está nem aí para essa multidão de gente morta. Há milhões à disposição, milhões de jovens dispostos a essa guerra. Há de fato um grande exército de reserva, à procura de ganhar algum trocado. Morrem uns, outros entram. Levados ao narcotráfico ou aos aplicativos, à morte.

O capitalista das nuvens sequer franze a testa diante dessa hecatombe, corpos sem vida no asfalto. Nem com a multidão de sobreviventes, mutilados, entregues aos serviços de saúde do Estado. Enquanto isso, o mercado de motos nada de braçada.  Previsão de recorde de vendas este ano, crescimento de mais de 14% nos emplacamentos até setembro, em comparação com o mesmo período do ano passado.

Até outubro, vendidas quase 2 milhões de motos –  precisamente, até agora,  1.833.552 unidades – a confirmar a explosão de vendas, e a certeza da continuidade do rio de sangue, sacrifício de jovens trabalhadores no altar da acumulação capitalista, a seguir impávida, colosso.

Necessário pensar política. O movimento negro deve abraçar essa pauta, a envolver a escala de trabalho, a remuneração, e os essenciais cuidados de proteção da atividade dos jovens envolvidos nessa guerra. O movimento negro e todo o movimento sindical.   Tal pauta diz respeito a todos. Sempre, busca da unidade da classe trabalhadora. Ontem e hoje.

Como me parece não estar no horizonte de médio prazo a derrota desse tipo de superexploração do trabalho, trata-se de unir forças para, no mínimo, no curto prazo, promover uma redução de danos, diminuir o número de mortes. A par da luta pela melhoria da remuneração desses trabalhadores, situada em níveis obscenos. No tresloucado trânsito das grandes metrópoles, as administrações têm obrigação de encontrar o espaço de locomoção dos motoboys de modo a preservar vidas.

Creio caber ainda aos movimentos sociais, ao sindicalismo, ao movimento negro um trabalho de esclarecimento, em amplo sentido. Constatar a realidade do chamado empreendedorismo, unir todos os envolvidos nesse mundo nas lutas específicas, tudo bem. Mas, não deixar de dizer o quanto isso significa de superexploração, o quanto é falsa a ideologia de tais trabalhadores serem empresários de si mesmos.

Trabalhador é trabalhador. Empresário é empresário. Capital e trabalho – um oceano a separá-los.  Cada qual no seu cada qual. O movimento negro, o movimento sindical, as organizações sociais têm o dever de olhar para essa juventude trabalhadora em busca do ganha-pão.

Contribuir para o avanço da consciência política dela, ajudá-la o quanto puder no estímulo à luta pelos interesses dela e de toda a classe envolvida no mundo do trabalho. Os interesses imediatos, a luta econômica, e a luta política, voltada à emancipação da humanidade, a implicar a derrota do racismo, a erradicar o derramamento de sangue negro no asfalto, inclusive o derramado nos seguidos massacres promovidos pela extrema-direita, como o desencadeado pelo governador do Rio de Janeiro recentemente.

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