Senhora, eu não trabalho aqui.
Volta e meia, a cena se repete. Dessa vez, estava numa famosa loja de plantas de São Paulo. O vendedor foi buscar uma peça enquanto eu esperava no meio da loja. Segundos depois, uma senhora, branca, acompanhada do marido, me olhou e imediatamente disse:
_ Oi, você pode me ajudar a carregar este vaso?!
Olhei ao redor. Os funcionários da loja vestiam uniforme verde-musgo. Eu vestia jeans e camiseta preta. Em comum, tínhamos a cor. Preta.
Respondi:
_ Não entendi a pergunta. Pode me explicar?!
Silêncio ensurdecedor. Aquele climão pesado. Se estivesse na época da escola pública, lá na Zona Leste, ouviria um sonoro: “Oooorrraaaaaa!”.
A mulher, surpresa, responde:
_ Ah, desculpe! Pensei que você trabalhava aqui.
_ Não, minha senhora. Não trabalho aqui. Sou cliente mesmo. Estou gastando um bom dinheiro, inclusive.
Minutos depois, a cena se repete. Outra pessoa “me confunde”. Dessa vez, não digo nada. Fico parado, olhando a pessoa no fundo do olho. Inerte. Alguns segundos se passam. Finalmente, ela solta um “Ah! Me confundi.”
O incômodo é geral. Os atendentes dizem que a cena é comum. Que são constrangidos frequentemente por clientes e se silenciam. Inclusive, em situações de racismo. A caixa comenta que, dias atrás, um funcionário negro retinto foi preterido por uma cliente “Ela disse ao gerente que queria ser atendida por outro funcionário. Chato, né?!”, reforça.
Pergunto sobre a reação do gerente ao reportarem o fato: “o cliente manda, né.” E complementa: “A empresa não quer perder a venda. E a gente tem conta pra pagar.” Simples assim.
Fui tirar satisfação com o gerente. Sim, sou desse tipo. Ele pede desculpas e diz que não pode controlar os clientes. Tenta ser cordial. Talvez por eu não ser funcionário da loja.
Olhando de fora, parece algo pequeno. Ato falho. Mas esse é um comportamento que se repete. E esses “pequenos abusos” têm nome. Micro agressões. O termo foi cunhado em 1970 pelo psiquiatra e professor negro de Harvard, Dr. Chester M. Pierce.
As micro agressões podem ser ataques, insultos ou invalidações feitas contra pessoas de grupos “minorizados” (pretos, mulheres, indígenas etc.), de forma intencional ou subconsciente. “Preto de alma branca”, “serviço de preto”, “cor do pecado” são alguns exemplos. E é justamente a repetição, assim como doses diárias de veneno, que cria problemas físicos e mentais. Você tem dúvida? Pergunte para uma criança preta qual a cor da boneca que ela acha bonita.
No caso da cor da pele, é curioso e triste ver que pessoas pretas também repetem esses padrões. Frases como “Minha neta, alisa o cabelo para arranjar um trabalho” ou “nossa, não pensei que você era o diretor da área” mostram o óbvio. No nosso país, ocupar profissões de destaque ou de poder (como um ministro do STF ou uma neurocirurgiã) exige pré-requisitos. Ser branco ainda é um deles.
Para quem já passou por situações como essa, deixo um desafio. Procure se lembrar da cena e, como diria a Bela Gil, que tal trocar sua micro agressão por um comentário ou ação mais empática? Se foi contra você, reforce que não gostou. Ah, dizer que é “mimimi” também é exemplo de micro agressão. Na luta por equidade racial, tem coisas que dependem mesmo de uma mudança interna. Não precisa nem chamar o fiscal dos bons costumes ou a polícia.
Ao gerente da loja ou a executiva daquela empresa bacana, o mês da consciência negra está chegando. É importante falar do tema, fazer post no Instagram e LinkedIn. Pode até me chamar para palestras (eu cobro, ok?!). Mas cuidado com a hipocrisia. Se nos outros 11 meses do ano o cliente manda e não se pode perder vendas, a conta, uma hora ou outra, vai sair bem cara.