Sob novo olhar, o conflito une e transforma 

*Fábio Pereira 

Erros são dores que produzem sabedoria (William Jordan)  

Nossa sociedade não estimula como eu gostaria um olhar de apreço pelo tropeço. Não me refiro a buscá-lo nem ignorar suas lamentáveis consequências, mas sim a preferir nutrir o auto acolhimento diante daquilo que costumamos classificar como desacerto, quando este fatalmente se consolida, alheio à nossa intenção. Vacilos escondem lições.  

Os conflitos do dia a dia, por exemplo, acabam tendo desconsiderado seu potencial transformador e evolutivo. Por isso, não é incomum que a gente tema, evite e esqueça que eles são inerentes à relação humana. Portanto, quando eles ocorrem, nem a luta nem a fuga nos salvam infalivelmente (com exceção em caso de grave risco à integridade ou à vida). O que parece ser mais oportuno do que temer o conflito, nos casos corriqueiros, é aprender a lidar com a contenda tanto quanto seja possível, em vez de só abominá-la. Até mesmo porque a ausência de conflito pode significar opressão e não paz. 

A sugestão desse novo olhar é amparada no que se chama de moderna teoria do conflito. Para seus próceres, se o conflito é inevitável podemos escolher enxergá-lo como oportunidade de transformação da realidade e não tão somente como uma condição que nos envergonha e paralisa. 

O psicólogo Morton Deutsch (1920-2017), um dos mais citados especialistas em resolução de disputas, vai definir que conflitos podem ser considerados destrutivos e construtivos. Essa classificação não estaria ligada ao potencial ofensivo ou tamanho da escalada, embora, como já  mencionado aqui, a proposta não é desdenhar desses fatores. 

Para ele, o conflito destrutivo é todo aquele que, na tentativa de ser resolvido, a relação preexistente entre as partes sofre um abalo. Já na definição de conflito construtivo, o modo de lidar contribui para que a relação preexistente se fortaleça. As questões aqui são: você tem saído dos conflitos com os vínculos mais fortes ou mais exauridos? Essa piora na relação realmente é indiferente para você? Não seria melhor passar pelo furacão do desentendimento preservando ao máximo o afeto? É possível. 

Despolarizar como ato de esperança 

Na obra A linguagem da paz em um mundo de conflitos (p.79), do também psicólogo Marshall Rosenberg, está descrita a citação completa de William Jordan, que abre este artigo. Diz assim: “Fiquemos felizes pela dignidade de nosso privilégio de cometer erros; felizes pela sabedoria que nos ajuda a reconhecê-los; felizes pelo poder que nos permite direcionar a sua luz para iluminar vividamente o caminho de nosso futuro. (…) Sem eles [os erros], não haveria crescimento individual, nem progresso, nem conquistas”. 

Marshall Rosenberg faz coro e avisa na mesma obra e página: “O primeiro passo para ajudar as pessoas é ensiná-las a aprender com seus erros, sem perder o autorrespeito”. Como se, diante dos conflitos nascentes dos enganos, resolvêssemos nos compreender, mirando quais necessidades queríamos atender com a atitude trágica para, após isso, buscar alternativas eficazes e recomeçar do ponto que for viável. 

Fora esse esforço de acolher a si, é valioso também considerar que o outro, por mais atitudes incompreensíveis que possa tomar, também possui necessidades e está em busca de atendê-las, seja mais ou menos consciente. O contrário de compreender o outro é concentrar os esforços em culpá-lo, o que ajuda pouco na busca de soluções de ganho mútuo. 

Das diversas ferramentas úteis a fim de se transformar conflitos e criar ambiente favorável para fortalecer os vínculos, existe a técnica da despolarização. Ela pretende dissipar a imagem de inimigo que tradicionalmente fazemos daqueles que se encontram em lado oposto ao nosso. O fundamento básico para isso faz sentido: como vamos precisar do outro para resolver o litígio, a imagem de inimigo afasta e gera desconexão. Quem é atacado vai preferir gastar energia para se defender e, potencialmente, contra-atacar. Assim, sobra pouca energia para colaborar. 

O juiz André Gomma de Azevedo, especialista em resolução de disputas e em advocacia resolutiva, que é focada em prevenir a escalada de conflitos e melhorar as relações das partes, ensina que  “o ato ou efeito de não perceber um conflito como se houvesse duas partes antagônicas ou dois polos distintos (um certo e outro errado) denomina‑se despolarização”. Tal premissa ajuda a transformar celeumas e potencializa a construção de acordos. 

Despolarizar, admitamos, é justamente o que não nos ensinam. Por isso, fica aqui o convite para que todos possamos apostar preferencialmente nesta rara forma de agir. Afinal, a polarização e a visão distorcida do conflito têm nos levado até onde queremos? Se a resposta for não, mudar pode ser um ato de esperança. 

*Fábio Pereira é jornalista, mediador de conflitos e facilitador de Comunicação Não-Violenta (CNV). Integra a ONG CNV em Rede e coordena a Câmara de Mediação Pacific. Instagram: @fabio.dialogos

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