Sobre amor, afeto e preconceito
Por: Leia Abadia
[Texto: Edição 215/2020]
Vivemos num país cuja estrutura social racista e machista interfere diretamente na dinâmica do amor, do amar e de ser amado. O conceito de amor e afeto que vivemos hoje é resultado da narrativa colonial sobre o conceito do que é bom e ruim; sobre o que é belo e feio; sobre o que é valioso e aquilo que não tem valor algum.
No Brasil Colônia, éramos divididos em três grupos: os nativos indígenas, os colonizadores vindos do continente europeu e a população negra, raptada do continente africano e escravizada, por anos. O único grupo capaz de criar narrativas e impor padrões, mesmo que à força, literalmente à base de extermínio dos seus opositores, foi a população branca vinda da Europa. Infelizmente, ainda vivemos sob reflexo desse período. O padrão branco foi colocado no imaginário do brasileiro como a escolha certa e qualquer outra opção como errada. Sob esse prisma, o embranquecimento era o único caminho seguro. Ter a aprovação “branca” ficou enraizado no subconsciente do povo brasileiro, e isso foi reforçado por várias gerações.
O resultado desse passado agressivo e cruel é facilmente identificado na solidão da mulher e do homem negro; na objetificação dos corpos negros e na hipersexualização de crianças, jovens e adultos negros.
Na sociedade em que o branco é significado do certo, embranquecer ou ficar mais perto desse padrão foi algo desejado pela comunidade por anos. Casarse ou se relacionar com pessoas brancas era visto como de ascensão. O homem negro, que por algum motivo ascendia profissional e financeiramente, era incentivado a escolher uma namorada ou esposa branca. Com as mulheres negras, pode ocorrer o mesmo, porém com menos frequência, já que esse grupo pertence, em classificação social, à base de preterimento estético social, o que nos leva diretamente para a solidão das mulheres negras.
O racismo interfere diretamente em todas as formas de amor e de amar. A comunidade LGBT QI+ também sofre com a solidão dos corpos negros. A luta de uma mulher trans negra ou de um gay negro, também é luta racial. O movimento ainda tem muito para desconstruir quando fala sobre hipersexualização, afeto e amor. Hoje já temos compreensão de que dar e receber afeto dentro da comunidade, sem a interferência da branquitude, é um ato de resistência e aponta o surgimento da nossa própria narrativa sobre amor, amar e ser amado! O amor afrocentrado está no ar!
É lindo e necessário ver negros e negras se amando, construindo famílias pretas, lutando lado a lado para terem a vida que desejam, com dignidade e exigindo igualdade de direitos, inclusive o de amar, sem medo de que esse amor preto seja um empecilho à trajetória de ascensão social.
Estamos nos apropriando do amor em sua essência! Casais afrocentrados passam a ser reconhecidos como algo positivo e exemplos a serem seguidos. Pessoas negras, de vida pública, que só se relacionam com pessoas brancas, hoje são questionadas. E tudo isso leva à reflexão sobre racismo e afetividade. Não se trata de crítica às relações inter-raciais, mas de destacar e compreender nossa própria trajetória em relação a amor, namoro, casamento e relacionamento. O conhecimento é a única forma de liberdade possível. O amor entre pretos e pretas pode ser revolucionário. Inspire-se nesses casais reais e apaixonados!