STF, religião e tirania
Na última sexta-feira o Presidente da República enriqueceu seu acervo de pérolas discursivas com uma frase e uma indagação temerárias, para dizer o mínimo.
Proclamou Sua Excelência, arauto das novas práticas na vida pública: “O estado é laico, mas eu sou cristão”; “Será que não está na hora de termos um ministro do STF evangélico?”
Segundo o último recenseamento feito pelo IBGE, 86,8% dos brasileiros declaram-se cristãos, dos quais 22,2% são evangélicos.
Não surpreende portanto, nem configura um problema o fato de Sua Excelência ser um cristão fervoroso ou indicar um evangélico para o STF.
O contexto, entretanto, em que tais frases foram proferidas é que fazem delas um grave problema.
Isto porque tratou-se de uma espécie de mimimi presidencial em face de decisão do STF que criminaliza a homofobia.
Inconformado, rapidamente o capitão sacou a criativa arma com a qual a nova política deve tratar decisões judiciais baseadas nas leis e que protegem direitos individuais: subordinar o Judiciário aos interesses de facções religiosas e, no limite, substituir a Constituição Federal pela Bíblia.
Conforme já abordei em artigos anteriores nesta coluna da revista “Raça’, o aparelhamento indevido e ilegítimo de espaços do poder público e inclusive do sistema de Justiça por grupos religiosos, ao contrário do que supõe Sua Excelência, nada tem de novidade.
Há décadas professores, diretores e funcionários de instituições educacionais tratam escolas públicas como se fossem puxadinhos de templos religiosos, humilhando, constrangendo e ofendendo crianças de 8, 9, 10 anos por serem ateias ou fieis das religiões afro-brasileiras, apenas para ficarmos nesses exemplos.
A privatização do Estado por grupos religiosos afronta a Constituição Federal, viola a dignidade da pessoa humana, corrói a democracia, dissemina o descrédito nas instituições e pretende aniquilar direitos dos milhões de brasileiros que não professam religião alguma ou são filiados a confissões religiosas ditas minoritárias.
O detalhe, alentador, é que a Constituição Federal, a Lei do Impeachment, a Lei de Improbidade Administrativa e o Código Penal, entre outras, determinam que o agente/funcionário público tem a obrigação jurídica de defender o interesse público, da coletividade, e não interesses ou sentimentos pessoais ou de grupos.
Favoritismos, predileções, predisposições e inclinações são critérios plenamente admissíveis na gestão de circos mambembes, por exemplo, ao passo que na gestão pública, o administrador está terrivelmente submetido ao princípio constitucional da impessoalidade.
A expressão latina “res publica”, república, significa literalmente “coisa do povo”, “coisa pública”, cuja gestão, até que se modifique a atual Constituição Federal, deve obediência aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Impessoalidade significa que a administração deve pautar-se pelo interesse público, previsto em lei, e tem o dever jurídico de tratar todos os brasileiros (e não somente a maioria) com equidade, sem discriminação injusta, sem animosidades pessoais ou movida por interesses sectários, de grupos, quaisquer que sejam.
Nas últimas décadas, demonstrando altivez, galhardia e honrando sua elevada missão constitucional, o STF adotou várias decisões que priorizaram as leis e não valores religiosos, a exemplo das pesquisas em células-tronco, união homoafetiva, descriminalização do aborto de anencéfalo e legalidade do abate religioso de animais.
A consciência democrática brasileira tem o dever de zelar pela autonomia e independência do Judiciário, última instância capaz de deter a tirania, o fascismo e o terrorismo de Estado.
Hédio Silva Jr., Advogado, Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP, é Coordenador-Executivo do IDAFRO – Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-brasileiras e articulista da Revista Raça