#TBT : HEROÍNAS DA RESISTÊNCIA

Referência máxima na arte nacional, Ruth de Souza é o grande exemplo das mais diversas gerações e seu legado segue direcionando negros e negras como Roberta Rodrigues e Luellen de Castro, dispostas a lutar por reconhecimento na vida e na arte.

[TEXTO EDIÇÃO 204/2019]

POR: FLAVIA CIRINO

MODISMO É ALGO QUE RUTH DE SOUZA NÃO FAZ A MENOR QUESTÃO DE SEGUIR. E NÃO É DE AGORA. ELA LEMBRA QUE SUA CRIAÇÃO – ATÉ OS NOVE ANOS DE IDADE EM UMA FAZENDA EM MINAS GERAIS E DEPOIS EM COPACABANA, FAMOSO BAIRRO DA ZONA SUL DO RIO DE JANEIRO – DEIXOU-A CIENTE DE QUE CORRETO É AQUILO EM QUE ELA ACREDITA E SEUS PAIS LHE PASSARAM COMO TAL.

“Veja só se vou andar com os cabelos todos pra cima porque sou negra e está na moda! Desde que me entendo como Ruth, minha mãe mantinha meus cabelos bem penteados. E eu sigo assim até hoje. Não sou menos negra ou menos empoderada do que ninguém por achar feio esses cabelos que enchem a tela da televisão”, decreta.

A segurança do que fala e faz, no auge de seus indiscutíveis 97 anos de idade, legitimam esse verdadeiro ícone da TV e do teatro a “fazer o que quiser”. A RAÇA pediu que a atriz apontasse algumas atrizes mais novas, que chamassem sua atenção pelo talento e determinação. Assim como ela ao longo de toda a sua trajetória. Entre vários nomes, Ruth apontou Roberta Rodrigues, que esteve recentemente no ar na novela “Segundo Sol”, da Globo, como a Doralice, e Luellen de Castro, ainda no ar em “Malhação: Vidas Brasileiras”.

“Épocas diferentes, gerações diferentes, não gosto de comparações, Cada uma tem seu estilo e o brilho próprio. Gosto demais da Dani Ornellas, Zezeh Barbosa, Cris Vianna, Juliana Alves, a linda Taís Araújo, tem uns rapazes ótimos também. E lindos, atores que podem fazer qualquer papel, não apenas de escravos e serviçais.”

Ruth nos contou muito mais e deu verdadeiras lições de vida na entrevista a seguir.

RAÇA: Dona Ruth, a senhora segue cheia de vigor e amor ao trabalho. Aos 97 anos, sabe que ainda pode produzir e contribuir pela arte. Como vê o cenário atual, os atores e atrizes negros chegando aos poucos a papéis mais relevantes na TV, no teatro e no cinema?

Ruth de Souza: Melhorou, né? Agora já dá pra nos reconhecer em mais lugares. Não está maravilhoso, mas avançamos muito! Sonhamos tanto em ter negros protagonistas e tivemos Taís Araújo e Lázaro Ramos lavando a alma de todos nós, artistas negros, atuando nos papéis principais. Satisfeita? Não estou. Falta muito a percorrer. Mas reclamar não adianta, é preciso fazer acontecer. E tem muita gente fazendo.

RAÇA: Como a senhora lida com a idade? As oportunidades de trabalho diminuem por conta disso?

Ruth de Souza:: Eu não conto o passar dos anos. Vivo! Quando completei 60 anos, ou seja, meio século mais uma década, eu decidi parar de contar. E sem planos. Vivo um dia após o outro, feliz. Estou fora da TV porque não há personagens para idosos. Mas meu trabalho mais recente ainda não foi ao ar e é justamente com essa temática, a melhor idade, aliás, a maravilhosa idade pela qual estou passando. É a série “Se Eu Fechar Os Olhos Agora”, inspirada no livro de Edney Silvestre. O autor, Ricardo Linhares, escreveu um personagem para mim. Faço a Madalena, idosa que morre ao guardar um segredo. Eu nunca deixei de trabalhar. Nunca! Ah, em maio deste ano eu fiz uma participação muito legal em “Mister Brau”, meu coração inflou de orgulho de estar ali com a Taís e o Lázaro, brilhantes como artistas principais, cheios de talento. Que conquista!

RAÇA: Aposentadoria, então, não está nos seus planos…

Ruth de Souza: Claro que não!

RAÇA: A senhora acompanha as novas tecnologias?

Ruth de Souza:: Odeio! Olha, eu fico louca com esse negócio de selfie. A pessoa te dá uma gravata e te obriga a sorrir. Não dá pra entender… Não importa um diálogo, sequer um cumprimento. Gentileza zero. Te pegam pelo cangote e gritam no seu ouvido. Tenho pavor. E telefone celular, como pode acabar com a conversa tradicional? As pessoas estão frente a frente, mas se falam pelo teclado. Não entendo, não gosto. Mas se me pedirem a tal da selfie, eu faço, até porque nem dá tempo de pensar. Ainda bem que estou sempre arrumadinha.

RAÇA: A senhora é muito vaidosa?

Ruth de Souza:: Sou! Gosto de andar direitinha, sem extravagâncias. Acredita que eu nunca andei de salto? Sempre de sapatinho baixo, sem perder a elegância. Cabelo arrumado, roupa limpa e vistosa. Não gosto de modismos. Nunca gostei. Esses cabelos de agora, por exemplo. Veja só se vou andar com os cabelos todos pra cima porque sou negra e está na moda? Desde que me entendo como Ruth, minha mãe mantinha meus cabelos bem penteados. E eu sigo assim até hoje. Não sou menos negra ou menos empoderada do que ninguém por achar feio esses cabelos que enchem a tela da televisão. Não gosto.

RAÇA: Não há um artista, seja de qual área for, que não exalte a senhora e não reconheça sua enorme e crucial contribuição pela arte. Como a senhora se vê?

Ruth de Souza:: Muito feliz por isso. Porque eu não tive uma referência negra. Isso me fez muita falta. Foram muitas barreiras derrubadas. Era tudo muito difícil e as oportunidades eram mínimas para nós negros. Começamos a ter uma luz no fim do túnel quando o Abdias do Nascimento (escritor e político) fundou o grupo Teatro Experimental do Negro. Ele era o grande líder da nossa causa. Naquela época, um ator branco era pintado de preto para representar a nossa gente. Quem diria que hoje em dia teríamos comerciais estrelados por negros? Aquela família completa, anunciando perfumes no dia das mães deste ano, foi de emocionar! O que é a elegância da Maju Coutinho, a classe da Cris Vianna? E esse menino que fez o Roberval em “Segundo Sol”, imponente, altivo! Somos lindos! Envelhecemos lindos, ninguém percebe. Aí você vê aquele monstro horroroso do presidente dos Estados Unidos, branco demais, chega ser vermelho, rosto estranho! Umas mulheres brancas enrugadas e quando você pergunta a idade, têm 40, 50 anos. Viva os negros brasileiros! Viva os artistas negros brasileiros que estão fazendo valer toda a nossa luta. Ela não para. Eu os aplaudo e me orgulho de cada conquista.

RAÇA: Nem sempre se aproveitam as oportunidades. A senhora agarrou as suas ou deixou passar alguma?

Ruth de Souza:: A Janete Clair e o Dias Gomes que deram a mim e ao Milton Gonçalves a oportunidade de fazer todo o tipo de trabalho. A partir disso, nós negros deixamos de ser mostrados de forma ridicularizada. Eu sempre agarrei com unhas e dentes todas as oportunidades que tive. Sempre briguei e cobrei muito de todo o mundo para ter espaço. Comecei como empregada. Depois fui pianista e juíza. Conseguimos.

RAÇA: Sua vida virou samba através da homenagem prestada pela Acadêmicos de Santa Cruz, escola de samba da Série A do Rio de Janeiro. A senhora já havia se imaginado desta forma?

Ruth de Souza:: Nunca! Quando o carnavalesco Cahê Rodrigues falou sobre a proposta, a emoção tomou conta de mim. Eu não sei como vai ser… Estou ansiosa por esse momento. A escola será a 4ª a desfilar na sexta-feira de carnaval, dia 1º de março, na Passarela do Samba carioca.

LUELLEM DE CASTRO

Jovem cantora e atriz de 21 anos(na época da entrevista), nascida e criada em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, Luellem de Castro assistiu pouco do trabalho de Ruth de Souza. Mais precisamente duas produções: “Na Forma da Lei”, em 2010, na qual a veterana atriz interpretou a Velha Oxalá, e mais recentemente a participação em “Mister Brau”. “A minha mãe, Vera Lúcia, sempre, sempre mesmo, falou sobre a dona Ruth. E enfatizava o orgulho que nós negros devemos ter dela, o valor que devemos dar a ela por toda a sua história, que abriu portas para que hoje eu mesma tenha a minha história”, destacou Luellem. 

Ter sido citada pela atriz foi motivo de comoção para a novata. “Fiquei tão emocionada que não consegui comemorar ainda. Nós, atores negros que estamos traçando um caminho novo, conversamos muito sobre representatividade, ocupar espaços de fala. A dona Ruth vem de uma época em que o diálogo não era aberto dessa forma e se hoje estamos aqui dialogando é porque ela abriu portas. É um privilégio estar aqui.”

ROBERTA RODRIGUES

“Eu sou privilegiada e abençoada por este momento”. Assim Roberta Rodrigues saudou Ruth de Souza ao chegar à casa da atriz, para esta reportagem. A carioca de 36 anos(na época da entrevista)  fez questão de ressaltar a luta da veterana.

“Se não fosse por ela, não estaríamos aqui, trabalhando, deixando de fazer personagens ridículos. Ainda falta! Quero mais! Por que eu não posso, por exemplo, apresentar um programa de variedades? Temos hoje uma atração com três mulheres brancas no comando. Por que não colocar uma negra? A única que tinha, como repórter, saiu…, mas é tempo de arregaçar as mangas e não apenas reclamar. Precisamos, assim como dona Ruth brilhantemente fez, mostrar nosso talento, fazer acontecer, fazer valer a nossa voz e ter vez.”

Para Roberta, as novas gerações precisam entender a importância de Ruth de Souza.

“Quando a gente fala sobre a Ruth de Souza a galera jovem nem sabe quem é, porque ninguém está nem aí pra história. A gente tem que se ajoelhar no chão para ela passar.”

PIONEIRISMO NEGRO

Entre julho de 1969 e fevereiro de 1970, Ruth de Souza viveu a primeira protagonista negra da TV nacional, na novela “A Cabana do Pai Tomás”. O escravo Tomás, curiosamente, foi vivido por um branco, o ator Sérgio Cardoso. Na época, o jornalista e escritor Plínio Marcos, em sua coluna no antigo jornal “Última Hora”, fez uma campanha em repúdio à escolha de Sérgio, para interpretar um negro. A imprensa e a classe artística defendiam que Milton Gonçalves deveria fazer o escravo Tomás. A polêmica alavancou a audiência.

Protagonizar a novela não foi o primeiro pioneirismo de Ruth. Em 1945, ela foi a primeira negra a pisar no palco do Theatro Municipal do Rio, para encenar a peça “O Imperador Jones”. Ruth de Souza foi também a primeira brasileira indicada ao prêmio de melhor atriz em um festival internacional de cinema, em 1954, em Veneza, por sua atuação em “Sinhá Moça”.

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