Tempo de aquilombar
Por: Rachel Quintiliano [Edição 220/2020]
A conexão dessas três palavras faz todo o sentido para abrir diálogos, mesmo em um período tão difícil, porque pode revelar uma força extraordinária das pessoas e da comunidade negra diante dos desafios.
Morremos aos montes em 2020. Morremos de morte matada com um joelho no pescoço e de “morte morrida”, de um vírus invisível que nos encontrou com velocidade e violência. Ainda na primeira onda da pandemia do novo coronavírus, os estudos já indicavam que pessoas negras, quando contraíam a doença, tinham mais chance de morrer. Não, o vírus não é mais severo conosco. A sociedade é. As pesquisadoras Edna Araújo e Kia Caldwell publicaram um artigo exatamente sobre isso, em que anunciam logo nas primeiras linhas que “o vírus está afetando desproporcionalmente os negros, resultado do racismo estrutural que remota à escravidão”. As pesquisadoras comparam o avanço da pandemia no Brasil e Estados Unidos.
A pandemia evidenciou que o racismo ainda impede que pessoas negras acessem os serviços de saúde de qualidade e com equidade. Mais uma vez, na luta por sobrevivência, nossa identidade e autoestima se mostrou estratégica.
A resposta veio da própria comunidade negra, pobre, periférica e favelada. A ação das mulheres negras mais uma vez despontou como uma resposta e, ainda que não se saiba sobre o real impacto da ação delas em números, não há sombra de dúvida que elas salvaram ou ajudaram a salvar muitas vidas. Isso tudo me fez lembrar de um sentimento que não se cansa em rondar pessoas negras como eu. Lembrei (uma memória ancestral) e senti o banzo, aquela tristeza profunda, severa, que segundo Nei Lopes, na Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana significa “pensamento”, “lembrança”, “saudade”, “paixão” e “mágoa”.
Uma tristeza que levou muitos de nós há alguns séculos a se lançar ao mar e que em um passado recente, lançou-nos aos portões e porões dos antigos manicômios. Hoje, revisitando o ano para escrever uma mensagem de esperança, o banzo é impulso. Aquela tristeza que conecta com quem veio antes, que mostra que, a despeito das dificuldades do presente, o passado pode ter sido ainda muito pior e tanta coisa maravilhosa, aqueles e aquelas que vieram antes, construíram. Mais do que antes, senti vontade de aquilombar, de lutar, junto com os meus, por liberdade. Não há lugar melhor, mais belo, que cultiva e transmite identidade e promove a
autoestima do que esse.
Ressignificado, o banzo e o aquilombamento, ainda que virtual, são para mim, força motriz que me atravessa
e não me deixa sucumbir diante dessa triste e dura realidade. Transformam-se em resiliência negra.