Teste do pescoço

“Houve um dia em que virei o pescoço e me vi sozinho no escritório da Faria Lima, cercado por 400 pessoas brancas”

“Você não é daqui, né? Está perdido? A entrada de serviço é pelos fundos.”

Perdi as contas de quantas vezes ouvi isso. E o quanto essa repetição me fez sentir inadequado, torto. Quem sente na pele, sabe a sensação de ser vigiado, de vergonha de entrar em certos lugares.

Tinha 20 e poucos anos quando entrei pela primeira vez num banco de investimento na Avenida Faria Lima. Pé direito enorme. Chão de mármore. O lugar era tão chique que intimidava. Eu só pensava: “que estou fazendo aqui, não tenho roupa para vir nesse lugar, muito menos, fazer uma entrevista”.

Passei anos trabalhando ali. Com o tempo, me acostumei ao local, às pessoas, carros importados na garagem, viagens para lugares que não existiam nos mapas das aulas de geografia, da escola pública onde estudei. 400 pessoas trabalhando no meu andar. Todas brancas, exceto 3, pretas como eu. Ah, tinham os seguranças também. E as copeiras, que serviam água a todos, sim, água num copo de cristal.

Confesso que me adaptei ao ambiente. Cabelo curto, roupa cara. Não tinha a consciência racial, nem a segurança financeira que nos permite criticar e falar o que pensamos. Olhando para trás, muita coisa mudou, eu mudei. As histórias se tornaram múltiplas: vozes pretas em  livros, documentários, artigos, conversas expandiram meu olhar. Revi minhas histórias, coloquei mais cores, e assim, o filme ficou mais nítido. O problema não era comigo. Nem com a minha cor.

Pelo contrário, o problema é a falta de cor, a falta de mais mulheres, de pessoas com algum tipo de deficiência. É muita gente, ainda, parecendo e pensando igual. Nem precisa de doutorado para saber disso. Quer tirar a prova? Faça o teste do pescoço. Vá ao centro da cidade, ou ao terminal de ônibus ou trem, às 6h da tarde. Veja quem está lá, o que vestem, qual a cor dos rostos. Faça o mesmo teste no restaurante ou shopping mais caro da sua cidade. Olhe todo o ambiente. Vire o pescoço de um lado para outro. E comece a contar. Quanto mais caro o lugar, menos gente preta e diversidade você vai ver.

Mas antes de sair por aí, preciso advertir que esse é um caminho sem volta. O teste do pescoço é um exercício perigoso. Ele incomoda porque você começa e não consegue mais parar. Toda vez que entra num local, automaticamente, começa a fazer conta. E quase sempre é goleada. Um 7 a 1 diário.

Eu sei que falar de racismo às vezes cansa. Parece chato explicar o óbvio mas, muitas vezes, é como falar a um peixe que existe vida fora da água. Como assim? E as pessoas não têm guelras, nem nadadeiras? E se o tema nem sempre é bem recebido, lembre-se, estamos em novembro e precisamos explorar o “mês da consciência negra” – e ocupar esse espaço que é “concedido” na mídia, nas empresas. Minha dica: pratique e divulgue o teste do pescoço.

E nada mais didático do que começar a olhar o mundo ao redor e, se possível, fora dele também. Lá nas periferias, ou no escritório, onde se costuma “bater o ponto”. E perceber quais cores se repetem, quais faltam, quais chamam atenção porque não “combinam” com o lugar.

Para mim, executivo e preto, novembro é o mês quando recebo convites para abordar o assunto. “Juliano, fala de letramento racial pra gente?”. “Ah, conta sua história”. Ou, “Como a gente sensibiliza o dono da empresa que esse assunto não é mimimi?”. Abordar a equidade racial passa por contextualizar mas, sobretudo, por sensibilizar. É uma jornada ingrata, difícil, e que muitas vezes vai falhar. Porque nem todo mundo concorda ou quer mudar. Ao mesmo tempo, se a gente não fizer nada, a mudança nunca vai acontecer. Simples assim.

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