Um nordeste historicamente injustiçado

Por: Marcelo Gentil

“Tá vendo aquele edifício moço? / Ajudei a levantar/ Foi um tempo de aflição/ Eram quatro condução/ Duas pra ir, duas pra voltar/ Hoje depois dele pronto/ Olho pra cima e fico tonto…” 1 .

Desde 1989, quando foram realizadas as primeiras eleições presidenciais no Brasil pós ditadura, incluindo o pleito de 2014, no qual Dilma Rousseff derrotou Aécio Neves, as eleições de 2022 foram as mais acirradas, difíceis e polarizadas. Os cientistas políticos que se dedicaram a analisar e interpretar este cenário foram unânimes com relação a essa questão. Setores da imprensa oficial e uma instituição sobrenatural chamada de “mercado”, bem que tentaram, por múltiplas estratégias e conveniências, emplacar uma terceira via por meio de diferentes nomes, o que não deu certo. E, a cada nova pesquisa divulgada, ficava explicito que o eleitorado brasileiro desejava como presidente ou Lula, ou o inominável, ao invés de um tal “nem, nem”, nem um e nem outro. 

    Ao compararmos o resultado atual, com o do segundo turno das eleições anteriores, fica mais explicito o que descrevi. Senão, vejamos: em 1989, Collor venceu a eleição com 53,03% dos votos válidos, enquanto Lula obteve 46,97% deles. Em 2002, Lula ganhou com 61,27%, contra 38,73, de José Serra. Em 2006, novamente Lula saiu vitorioso com 60,83%, contra 39,17% de Geraldo Alckmin, hoje seu vice-presidente na chapa vitoriosa. Em 2010, Dilma venceu Serra com 56,05% dos votos, contra 43,95% do adversário. Em 2014, a disputa também se acirrou, ao ponto de o candidato derrotado, Aécio Neves, comandar o que se chamou de “terceiro turno”, que foi a semente da erva daninha que brotou em forma de golpe e apeou Dilma Rousseff do poder, em 2016. Naquela eleição, Dilma obteve 51,64%, contra 48,36% do ex-governador mineiro. Já em 2018, com Lula impedido de concorrer, o atual Presidente da República se elegeu com 55,13%, contra 44,87% de Haddad. E, ao PT, como tem reiterado Lula, coube “voltar pra casa, lamber as feridas e se resignar para voltar ao jogo das disputas eleitorais nacionais em um outro momento”.

    Nas eleições de 2022, estavam em jogo duas propostas diametral e ideologicamente opostas. De um lado, a civilização, retratada pela defesa da Constituição e da democracia; do outro a barbárie, materializada na desconstitucionalização, no ataque à democracia e no restabelecimento da lógica da Casa-Grande no centro da política nacional. Ou ainda, a defesa dos valores democráticos, contra um autoritarismo golpista embalado por um “gabinete do ódio”, em franca expansão.  Neste cenário, Estados e regiões brasileiras, demonstraram, sem titubear, de qual lado estavam. E decidiram.

    De acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, os percentuais de votos dos dois candidatos no segundo turno 2022 são os seguintes: 1- Região Sudeste: Lula, 45,74%, o outro candidato, 54,26%. 2- Região Nordeste: Lula, 69,35%, contra 30,66 do atual presidente. 3- Região Sul: Lula, 38,16%, contra 61,84 do oponente. 4- Norte: Lula, 48,97% contra 51,03%. 5- Centro-Oeste: Lula 39,79%, contra 60,21. 6- No exterior, Lula obteve 50,90%, ante, 49,10% do seu adversário.

    Ainda de acordo com dados do mesmo TSE, o número de brasileiros no exterior, aptos a votar para presidente da república nas eleições de 2022 é de, apenas, 697 mil brasileiros. Portanto, um número irrelevante, ainda que recorde, em um eleitorado superior a 136 milhões de inscritos. Considerando que das cinco regiões brasileiras, Lula triunfou somente no Nordeste, sob esse recorte regional. Um simples exercício de lógica, nos autoriza a afirmar que foram os nordestinos quem conduziram Luíz Inácio Lula da Silva ao terceiro mandato de presidente da república.

Entre os Estados do Nordeste, sem desconhecer a importância dos outros seis, três merecem destaque: Piauí, que deu a Lula 77% dos votos válidos, a Bahia que garantiu 72% dos votos vitoriosos e o Maranhão, com 71% dos votos no segundo turno.

    Garantida a eleição, eis que chega o momento da montagem da equipe de transição. Sob o comando do vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, estão previstos, a princípio, um total de 31 grupos temáticos, para levantar informações, realizar diagnósticos e apontar sugestões para o governo que se inicia em 1 de janeiro de 2023. São eles: 1- Agricultura, pecuária e abastecimento; 2- Assistência social; 3- Centro de governo; 4- Cidades; 5- Ciência, tecnologia e inovação; 6- Comunicações; 7- Cultura; 8- Defesa; 9- Desenvolvimento agrário; 10- Desenvolvimento regional; 11- Direitos humanos; 12 – Economia; 13- Educação; 14- Esporte; 15 – Igualdade racial; 16- Indústria, comércio e serviços; 17- Infraestrutura; 18- Inteligência estratégica; 19- Justiça e segurança pública; 20- Meio ambiente; 21- Minas e energia; 22- Mulheres; 23- Pesca; 24- Planejamento, orçamento e gestão; 25 – Povos originários; 26- Previdência social; 27- Relações exteriores; 28- Saúde; 29- Trabalho; 30- Transparência, integridade e controle; 31- Turismo.

    À medida que os grupos e os respectivos nomes estão sendo anunciados, aumenta a expectativa de que importantes quadros técnicos e políticos afro-brasileiros com trajetória nos movimentos negros e, em especial da Região Nordeste, responsável pelo triunfo eleitoral de Lula, sejam contemplados. Ledo engano. Por fim, ainda nos restava a certeza de que, ao menos – e como prêmio de consolação – no grupo de Igualdade Racial, haveria um número significativo de negros nordestinos, em especial da Bahia, não apenas pelo expressivo número de votos que garantiu vitória para Lula, mas, e, principalmente, pela importância do movimento negro baiano no cenário nacional das lidas antirracistas. A Bahia seja talvez o único e, se não, o Estado pioneiro, em ter em sua Constituição (1989) um capítulo dedicado aos afro-baianos. Nela, o Capítulo do Negro (XXIII, Artigos 286 a 290), mais tarde inspirou uma série de políticas publicas incorporadas aos ordenamentos jurídicos federais, como é o caso da Lei 10.689/2003, que tem como precursor, o Artigo 288 da Constituição baiana, que determina que o Estado da Bahia inclua em seus programas de formação e aperfeiçoamento dos servidores públicos civis e militares, uma disciplina que verse sobre a participação do negro na formação histórica da sociedade brasileira. Na mesma dimensão de ineditismo figura o Artigo 289, que inaugura a reserva de vagas para pessoas negras, como política de reparação e ação afirmativa.

    Mesmo no grupo dedicado a discutir e apontar caminhos para a construção da igualdade racial, composto por reconhecidos e respeitados quadros dos movimentos negros nacionais, nós, os pretos e pretas do Nordeste ainda estamos alijados deste importante projeto de reconstrução do Brasil, como quem nada tem a contribuir diante da “superioridade”, daquilo que o professor de direito da Universidade Federal da Bahia – UFBA e coordenador do Programa de Direitos e Relações Raciais da UFBA, Samuel Vida, está chamando de “SUDESTINOCENTRISMO” escancarado, que penaliza os responsáveis por garantir a apertada vitória de Lula, em benefício daqueles que no dia 30 de outubro foram derrotados eleitoralmente.  

    Essa é a dura realidade de uma esquerda da qual muitos de nós fazemos parte, mas que insiste em se comportar exatamente igual à direita. E, justamente por isso, Sueli Carneiro cunhou a célebre frase “Eu, entre direita e esquerda, continuo sendo preta”.

Uma composição gravada pelo Olodum, de autoria do cantor e compositor Lazinho bem retrata a atenção dispensada ao povo negro nordestino pelos que por nós foram eleitos. É a canção Quartezala que diz “… Me diz sim depois não/ Na frente da galera me chama de irmão”. 

 “E pra aumentar o meu tédio/Eu nem posso olhar o prédio/Que eu ajudei a fazer”.

Urge corrigir essas assimetrias. Ainda é tempo.

P.S. O presente texto foi escrito na última sexta-feira, 14/11, antes de ser anunciado o nome de Yuri Silva, jornalista e coordenador geral do Coletivo de Entidades Negras – CEN, ter sido indicado para a Comissão de Transição.

Abraços e sucesso Yuri. Você nos representa.

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