Uma reitora negra em busca da reeleição
Por Maurício Pestana
Joana Guimarães é a primeira reitora negra eleita para comandar uma universidade federal no Brasil. No dia 24 de maio de 2018, ela foi oficialmente nomeada reitora da Universidade Federal do Sul da Bahia. Com um extenso currículo acadêmico, Guimarães se formou em geologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e aprendeu desde cedo que a educação deveria ser prioridade.
Sua formação ainda inclui o Mestrado em Geoquímica pela Universidade Federal da Bahia e Doutorado em Engenharia Ambiental pela Cornell University (EUA) e Estágio Pós-doutoral na Brown University (EUA). E, apesar de a informação passar rápido e fácil pelos olhos do leitor, o tempo e o trabalho que Joana Guimarães teve para chegar a esses lugares não foram assim tão simples. Driblar as questões raciais e sociais que foram obstáculos em sua vida a fizeram perceber que a educação é um caminho indispensável para os nossos. Principalmente quando a educação é pensada a partir dos nossos saberes e valores.
É interessante acompanhar o caminho que a reitora da UFSB segue, agora em busca da reeleição. A filha mais velha de seis irmãos, todos formados, como ela conta com orgulho e com os devidos créditos dados aos pais, concedeu entrevista para o CEO da RAÇA, Maurício Pestana e, nas Páginas Pretas, revelou o desejo de continuar o trabalho que vem realizando à frente da universidade.
RAÇA – A senhora conquistou uma formação sólida e quebrou vários paradigmas ao alcançar o cargo de reitora da Universidade Federal do Sul da Bahia. Conte-nos como a senhora trilhou esse caminho.
Joana Guimarães – Eu sempre tenho muito cuidado quando falo sobre isso para não parecer aquela coisa de que basta você se esforçar e basta você se empenhar que você consegue. A gente sabe que não é bem assim. A gente sabe que tem muita gente que se esforça, que se empenha e se dedica a muita coisa e não consegue porque as oportunidades não existem, não aparecem, não são fáceis. Eu costumo dizer que eu tive, claro, o empenho pessoal que é normal, mas costumo dizer que tive elementos, oportunidades e acasos na minha vida que me fizeram seguir essa trajetória.
Os meus pais, principalmente minha mãe, era uma pessoa muito dedicada a essa questão de estudar, ela sempre deu muita importância a isso apesar de não ter praticamente nenhum estudo. Ela tinha muita vontade de aprender, de estudar. Ela não abria mão dos filhos estudarem. Esse foi o primeiro incentivo e suporte em casa. Quando eu tinha de seis para sete anos, nós morávamos em uma cidadezinha aqui perto de Itabuna (BA), onde meu pai trabalhava como cobrador de ônibus. Nesse período, ele tinha saído da roça onde ele trabalhava porque minha mãe queria que a gente estudasse. Depois de dois anos trabalhando na empresa de ônibus meu pai foi demitido e nós passamos à situação de extrema dificuldade quando isso aconteceu. Aí a gente veio morar em Itabuna e ele começou a trabalhar aqui e ali, fazendo bicos. Eu sempre costumo dizer que esse foi o marco da minha vida, porque ter perdido aquele emprego do meu pai e sair daquela cidade perto de Itabuna e a partir daí ter enfrentado muita dificuldade e acabar vindo morar em Salvador por uma questão de necessidade e de emprego mudou completamente a minha vida porque aqui (em Itabuna) eu jamais teria condições de estudar, meu pai não teria como me mandar para Salvador. Então, quando eu falo das oportunidades, eu falo um pouco dessas coisas que aconteceram ao longo da minha vida.
Eu sempre gostei de estudar, gostava muito de ler. Eu sou a mais velha de seis irmãos e eu acho que tive uma grande influência com eles. Minha mãe era muito firme na questão de estudo e eu gostava muito de estudar, então isso influenciou um pouco meus irmãos mais novos. Todo mundo conseguiu se formar na minha família. São seis e todos fizeram faculdade. Isso foi uma marca.
Chegando em Salvador fui fazer escola técnica. Fiz um processo seletivo e estudei na escola técnica que na época se chamava Escola Técnica Federal. Depois fui para a faculdade. Me lembro também de ter feito um concurso para a Caixa Econômica Federal logo que passei no vestibular, então fiquei entre ir para Caixa e o curso de geologia. Era um curso em tempo integral e não dava para trabalhar ao mesmo tempo. Mas a família toda, minha mãe principalmente, disse que primeiro vinham os estudos. Essas coisas fizeram a minha trajetória e foram muito importantes. O suporte familiar foi importante.
RAÇA – A Universidade Federal do Sul da Bahia tem uma importância fundamental por estar localizada em uma região com muitos indígenas e negros. E a senhora tem um projeto pedagógico interessante lá, como está o projeto de inclusão na UFSB?
Joana Guimarães – Desde o início, essa universidade tinha uma questão muito vinculada ao território. A realidade do território, a questão da oportunidade para os estudantes de baixa renda. Nós criamos aqui o que a gente chama de “colégios universitários” que são pólos universitários que funcionam em alguns municípios no entorno dos nossos campi. Esses estudantes podem começar a universidade e continuar assistindo suas aulas nesses espaços que a gente criou em convênio com a Secretaria de Educação do Estado e isso facilita muito a vida de muitos estudantes que têm dificuldade de transporte e que não tem recursos para vir morar em Itabuna, Porto ou Teixeira, onde estão localizados nossos campi. A gente já começou com essa pegada de pensar um pouco a região e também sempre muito próximo das comunidades regionais, trabalhando muito em articulação com as comunidades indígenas e quilombolas. A gente também começou com a questão das cotas, por exemplo, a lei de cotas começou em 2012 e definia que no mínimo 50% das cotas seriam reservadas para estudantes egressos da educação pública. E nós logo estabelecemos um percentual de cotas de 55%. Depois nós ampliamos esse percentual de cotas para 75%. Nos colégios universitários nós temos 85% de cota para escola pública. Até porque muitos dos nossos municípios não têm escolas de ensino médio privadas. Nós fomos trabalhando outras articulações, temos vagas especiais para indígenas aldeados, temos vagas para quilombolas, para pessoas trans, pessoas com deficiência, para povos ciganos que vivem aqui na região. Então fomos criando essas cotas especiais e hoje eu diria que temos uma política de cotas bastante robusta.
A gente tem um pró-reitor de assistência estudantil que é muito dedicado a essa causa, as ações afirmativas e a questão da assistência estudantil são objetos de estudo dele. Enfim, a gente tem tido um olhar muito especial para a questão da inclusão. Além disso, temos tentado nos integrar para trabalhar com as organizações sociais que existem na região, naquela perspectiva de que a gente não está aqui para inventar as coisas, nem criar novas perspectivas, mas trabalhar com as organizações que já tem uma atuação na região. E a gente se soma a essas instituições para trabalhar em colaboração com elas.
RAÇA – Esse ano será muito importante para a política de cotas no Brasil, pois será um ano de revisão e de análise sobre os resultados depois de dez anos. A senhora tem participado dessas discussões? Como acha que acontecerão os debates em torno do tema no Congresso Nacional, visto que temos uma ala ultra conservadora no poder?
Joana Guimarães – Eu já participei de algumas discussões no congresso e de audiências públicas. E assim a gente tem feito essa discussão, até mesmo a nível das próprias universidades federais. Nós criamos aqui, em articulação com Associação de Pesquisadores Negros (ABPN), o que estamos chamando de coletivo de reitoras e reitores negros que tem feito uma série de seminários nas universidades que são dirigidas por esses reitores. Hoje somos 149 instituições, somando as universidades estaduais, universidades federais e os institutos federais, e nós temos em torno de 10 reitores negros somente.
Em reuniões da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES) provocamos o início dessa discussão dentro das nossas instituições, porque a ideia, inclusive, é que as instituições, respeitando sua autonomia, mantenham suas políticas independentes da Lei de Cotas serem ou não mantidas ou revisadas, considerando que a gente tem autonomia para isso. Eu tenho participado de todas essas discussões e já estive duas vezes no Senado com o senador Paulo Paim, que já fez duas audiências públicas sobre essa temática. Já tivemos também na Câmara dos Deputados e sempre indicam o meu nome para representar o coletivo de reitores nessas discussões. E me parece que há um movimento de defesa e ampliação da Lei de Cotas entre os parlamentares mais progressistas.
RAÇA – Durante quase três anos como Secretário da Igualdade Racial na gestão de Fernando Haddad (PT) à frente da Prefeitura de São Paulo, notei que um dos problemas que mais tínhamos com relação às cotas eram as fraudes. Como a senhora lida com isso na UFSB?
Joana Guimarães – Infelizmente esse é um problema enfrentado em todas as universidades. Em uma entrevista que concedi há um tempo, as pessoas me perguntaram como é ser reitora negra na Bahia e eu respondi que é igual ser reitora em qualquer lugar do Brasil. A gente acha que a Bahia é o paraíso do não racismo, mas não é bem assim, as coisas aqui também acontecem e de forma difícil. A gente tem esse problema, sem dúvida, e nós aqui ainda temos um agravante. A universidade tem um regime de ciclos em que o aluno entra através de um bacharelado interdisciplinar em que ele não escolhe o curso de formação profissional de entrada, ele entra nesse bacharelado de grande área, são três grandes áreas: artes, humanidades e ciências. E a partir daí é que ele vai fazer sua trajetória, se ele entrou para ciências, ele vai escolher um dos cursos da área de ciências que ele se identifica mais. Nós tínhamos o que era chamado de bacharelado interdisciplinar em saúde, e aí dez em cada dez alunos queriam medicina, obviamente, gerava uma grande concorrência interna dos alunos querendo fazer medicina. Todo mundo, não só aqueles que entravam na saúde, mas também aqueles que entravam em outras áreas acabavam querendo tentar construir uma trajetória para chegar à Medicina. Como a gente tem as cotas iniciais, e para o segundo ciclo a gente também mantém o percentual de cotas, isso criou uma demanda e uma judicialização enorme. A gente tem muitos processos judiciais aqui. Criamos a comissão de acompanhamento da política de cotas, criamos a comissão de heteroidentificação já na entrada do aluno.
Já fizemos vários processos de expulsão de alunos da universidade que entraram indevidamente pelas cotas, mas esses alunos entram com liminar e acabam voltando para o curso.
RAÇA – Há algum tempo tivemos um problema em que um aluno negro e uma menina branca recorreram ao judiciário e a menina branca ganhou o direito de manter sua vaga obtida através do sistema de cotas. Como a senhora vê esse caso, que foi tão emblemático?
Joana Guimarães – Quando começamos a discutir a política de cotas, a gente defendia a autodeclaração. Houve um momento em que havia essa discussão, se a gente ia estabelecer bancas de heteroidentificação. A ideia no momento em que defendemos a autodeclaração era que as pessoas reforçassem sua identificação como pessoas negras. E começassem a se assumir, porque muita gente não se assumia por conta da discriminação.
É muito importante trabalhar a questão das denúncias. É muito importante porque esse tipo de tentativa de fraude vai continuar acontecendo. Hoje, aqui na UFSB nós já reduzimos muito isso, porque as pessoas sabem que nós estamos atentos e sabem que elas vão ser confrontadas nessas suas auto-declarações. Mas naquele momento, com esse caso que você cita, especificamente, tem a questão de que, a nossa sociedade, nossa classe média, sempre teve seu direito e o direito de seus filhos, de estarem na universidade, garantidos, porque isso é dado a ela, à classe média. A elite branca brasileira se coloca como “isso pertence a nós, a universidade é nossa, não é de vocês, vocês são pessoas que não precisam disso. Para nos servir vocês não precisam estar na universidade”. Então ela faz esse tipo de coisa [fraude nas cotas e busca pela defesa judicial do direito de manter a vaga obtida dessa maneira] sem o menor constrangimento porque na percepção dela, ela está garantindo um direito que sempre foi seu. Na concepção dela, esse espaço supostamente sempre foi dela e ela tem o direito de defender isso.
RAÇA – A senhora tem uma trajetória inspiradora e já deixou uma marca na história como a primeira reitora negra de uma universidade federal no Brasil. Agora parte para concorrer à reeleição ao cargo de reitora da UFSB. Por que continuar esse trabalho?
Joana Guimarães – Eu estava conversando com uma pessoa que está trabalhando na minha equipe de apoio à reeleição e ela estava preocupada com a divulgação da minha candidatura. Mas eu disse “eu estou super tranquila nessa eleição, com a sensação de missão cumprida. Se a comunidade achar que o trabalho que eu desenvolvi nessa universidade não é um trabalho que deve continuar ou que outra pessoa deve assumir esses passos, eu estarei tranquila, não é algo que vai me fazer sofrer”. Mas fizemos todo um trabalho e essa universidade ainda é muito jovem, tem sete anos e meio de funcionamento, e tudo que nós fizemos ainda não está consolidado e eu acho que é um risco muito grande a gente sair e deixar isso para uma pessoa que venha com uma outra visão sobre essas questões.
Não que a chapa adversária seja uma chapa de direita, não são pessoas conservadoras, mas são pessoas que tem outra concepção da universidade, naquela perspectiva que eu sempre combato muito que é a perspectiva de que a elite branca brasileira é quem sabe o que é bom para nós. Ela que define o que é bom para o povo negro, ela sabe o que a periferia quer, ela pretensamente sabe. E essa é uma questão que eu acho que a gente precisa mudar na universidade, mudar essa concepção de que essa elite branca, que se diz progressista, está preocupada com as questões sociais, mas é preocupada com as questões sociais e pontos vista delas. Do ponto de vista de uma concepção de mundo que vem de uma visão eurocentrista, uma visão de que tudo que é bom está nos Estados Unidos e na Europa e que mesmo nas questões progressistas a gente precisa seguir esses passos.
Eu acho que a gente precisa mudar isso. Mudar no sentido de que a gente se empodere e no sentido de definir o que nós queremos de importante. O que é culturalmente e cientificamente importante para nós. Nós não somos pessoas que devem apenas falar sobre negritude, mas a gente também quer contribuir em muitas outras questões e muitas outras discussões do ponto de vista intelectual. E construir esse pensamento a partir do nosso ponto vista, do ponto de vista do nosso povo e do que nós sofremos e sentimos.
Só nós sabemos o que é ser negro nesse país. A gente pode até discutir a concepção de sociedade que a gente construiu, mas a gente precisa começar a trabalhar pensando que essas pessoas têm desejos, vontades e tem a sua própria concepção de mundo. É um pouco por aí que vem a minha vontade de continuar.