Uma temporada no inferno, de Henrique Marques Samyn

Qualquer pessoa negra poderia ter escrito o livro “Cemitério dos Vivos“, de Lima Barreto (1881-1922), ou mesmo “Uma temporada no inferno“, de Henrique Marques Samyn, pelo simples fato de que o racismo é um fator de adoecimento grave, inclusive mental. Mas, obviamente, nem todo mundo é melhor e maior que Lima Barreto ou Henrique Marques Samyn. Talvez o narrador (sem nome) do livro de Samyn seja. O tempo e a história dirão!

Publicado, neste ano, pela editora Malê, com 120 páginas, capa de Dandarra Santana, ilustração de Keila Gondim, diagramação de Maristela Meneghetti e um prólogo valioso de Caroline Bianca Moreth, o livro é uma  homenagem ao escritor, intelectual, ativista e insurgente negro Lima Barreto.  O personagem principal, uma figura totalmente fissurada em Lima Barreto, se propõe a terminar o livro Cemitério dos Vivos e mais do que isso: revisar, corrigir e melhorar as obras barretianas. 

O livro é uma preciosidade, na minha singela opinião (sempre temo em escrever sugestões de leituras sobre os “grandes” e esse é o caso). Em três páginas de leitura, compreendi o medo que me acompanha há tanto tempo: o de enlouquecer. A possibilidade de ser trancafiada em um hospício, por não ser compreendida, por ser negra e/ou pobre. 

Lima Barreto e, agora, Henrique Marques Samyn (que ousadia, meu caro – aquela coragem dos insurgentes), deixam esse meu medo ainda mais evidente. O que fazer com aqueles e aquelas que não se encaixam nessa sociedade branca, desigual e racista? Primeiro, ofereça-lhes álcool ou outras drogas que possam distensionar o pensamento e os tornar, possivelmente, animais mansos; depois, encarcera em um hospício e, depois, “certamente” cometer-lhes-ão crimes. Então, joga-lhes na cadeia, em uma temporada eterna no inferno, como em alto e bom som, já cantou Elza Soares em “A carne“. 

Os meus delírios de leitora foram muitos. O apreço ao personagem também. A escrita firme, determinada e também criativa de Henrique Marques Samyn pode-te alcançar. É um livro que se propõe a registrar ficcionalmente o tempo que o personagem principal passa no Hospital dos Alienados, a fim de viver a mesma experiência de Lima Barreto, internado duas vezes em um hospital psiquiátrico. 

Essa temporada é registrada a partir de relatos do que o narrador vivencia e reflete sobre a experiência no hospício. Por óbvio, enquanto homem negro, pobre, mas profundamente erudito e absolutamente são, conforme suas próprias anotações, constrói uma tese muito nítida de que aquele lugar é um cemitério de vivos e que o tratamento dado aos doentes não tem o menor intuito de cuidá-los e, tampouco, curá-los.

São muitos os trechos de críticas ao sistema hospitalar manicomial, ao tratamento desigual e, sobretudo, ao racismo. 

“[…] A capacidade mental dos negros é discutida a priori e a dos brancos, a posteriori”. Em outro trecho, destaca que “[…] o ser preto é a sentença final – que leva para o inferno, assim como todos os outros de sua raça”. 

Parece que ser letrado, intelectual e até mesmo virtuoso não é suficiente. Não há perdão para o defeito de cor, nem no livro de Henrique Marques Samyn, nem nos preciosos escritos de Lima Barreto. E me parece que nem mesmo no mundo fora da literatura.

O livro é repleto de delírios e reflexões contundentes do personagem principal. Observei que, nos trechos datados, o texto é mais delirante. Nos não datados, mais conscientes. A forma como os trechos são  colocados causa uma confusão, acredito que proposital, que, ao mesmo tempo, ajuda quem lê a entrar no clima da publicação. Confesso que fiquei ansiosa o suficiente para virar mais e mais páginas. 

O desespero do narrador para se manter consciente é tocante. “[…] Quanto a mim e aos outros indigentes, o que nos resta? A indiferença, o esquecimento. Só fui examinado quando entrei no hospício – o que, aparentemente, foi o bastante para que eu fosse condenado a permanecer aqui por um tempo indeterminado, junto dos doidos e dos vagabundos que vagam e sobrevivem, trôpegos, sempre entregues ao delírio, ao sonho, ao ócio”. 

O livro é um grito por ajuda, por liberdade, por equidade, pelo fim do racismo, assim como quase tudo que escreveu Lima Barreto, homenageado na publicação e, mais uma vez, reconhecido pelos autores negros, deste tempo, como Henrique Marques Samyn.

Com habilidade, o autor consegue te conduzir por uma leitura apaixonada, no sentido mais puro da palavra, por caminhos que se você é pessoa negra, certamente já caminhou. Talvez agora e, mais uma vez, com outro para lhe segurar a mão. 

Henrique Marques Samyn

Foto: Lina Arão

Criado na zona oeste do Rio, é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde leciona na graduação e na pós-graduação e desenvolve pesquisas sobre representações de gênero e raça em produções literárias. Na mesma instituição, coordena o premiado projeto LetrasPretas, dedicado à divulgação e ao estudo da produção intelectual de mulheres negras; também atua como professor e palestrante em diversas universidades brasileiras e estrangeiras.

Lançamentos

Um defeito de cor – edição especial, de Ana Maria Gonçalves

Sinopse: Vencedor do prestigioso Prêmio Casa de las Américas e incluído na lista da Folha de S.Paulo como o sétimo entre 200 livros mais importantes para entender o Brasil em seus 200 anos de independência, Um defeito de cor conta a saga de Kehinde, mulher negra que, aos oito anos, é sequestrada no Reino do Daomé, atual Benin, e trazida para ser escravizada na Ilha de Itaparica, na Bahia. No livro, Kehinde narra em detalhes a sua captura, a vida como escravizada, os seus amores, as desilusões, os sofrimentos, as viagens em busca de um de seus filhos e de sua religiosidade. Além disso, mostra como conseguiu a sua carta de alforria e, na volta para a África, tornou-se uma empresária bem-sucedida, apesar de todos os percalços e aventuras pelos quais passou. A personagem foi inspirada em Luísa Mahin, que teria sido mãe do poeta Luís Gama e participado da célebre Revolta dos Malês, movimento liderado por escravizados muçulmanos a favor da Abolição. Esta edição especial, em novo projeto gráfico, inclui obras de Rosana Paulino – artista visual que participou da Bienal de Veneza e tem obras expostas nos principais museus do mundo, como o Metropolitan, de Nova York, e a Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa – e o conto afrofuturista inédito “Ancestars”, a primeira narrativa de Ana Maria Gonçalves publicada desde o lançamento de Um defeito de cor. O texto de orelha é assinado pela premiada escritora Cidinha da Silva.

Mesmo rio, de Elisama Santos

Sinopse: Em Mesmo rio, Elisama Santos parte da ideia de que, do mesmo modo que “ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio”, é impossível ser a mesma mãe para todos os filhos. E isso, invariavelmente, deixa profundas marcas em todos. É um convite a adentrar nas águas caudalosas e nos meandros nada óbvios desse curso intenso que é a dinâmica familiar. Com o suporte de uma narrativa literária envolvente, a autora nos enreda com personagens cativantes e reais em situações cotidianas, que gradualmente nos levam a sentimentos complexos. Aqui, acompanhamos a história da família Soares: a mãe, Maria Lúcia; o pai, Benedito; e os três filhos: Lucas, Marília e Rita. Mais do que respostas, neste romance comovente – e, em muitos momentos, desconcertante -, Elisama Santos nos faz acessar nossa própria história e elaborar nossas questões.

 

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Jornalista com experiência em gestão, relações públicas e promoção da equidade de gênero e raça. Trabalhou na imprensa, governo, sociedade civil, iniciativa privada e organismos internacionais. Está a frente do canal "Negra Percepção" no YouTube e é autora do livro 'Negra percepção: sobre mim e nós na pandemia'.

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