Línguas desatadas, de Marlon Riggs

Línguas desatadas está na mostra de cinema que homenageia e reapresenta Marlon Riggs, cineasta referência para compreender e discutir raça e sexualidade

Quase tudo que tive acesso, em minha vida, sobre orientação sexual e identidade de gênero passava por uma compreensão branca. Há 20 anos, eu acreditava que a voz do movimento LBGTQIA+ vinha das pessoas brancas de São Francisco/EUA, frequentemente documentadas no cinema.  Aquilo que emergia no Brasil também ganhava visibilidade a partir de personagens e lideranças dos movimentos anti-homofobia, visivelmente similares àquelas de São Francisco.

Isso sempre me gerou incômodo e eu com frequência me perguntava onde estavam as pessoas LGBTQIA+ negras ou o que elas tinham a dizer sobre si próprias ou para além do que a mídia divulgava de forma caricata e preconceituosa. Por óbvio eu estava errada, as pessoas negras lésbicas, gays, bissexuais, trans, travestis, queers, intersexuais e assexuais estavam por toda a parte e, às vezes, lutando silenciosamente ou tendo a sua voz sufocada.

O filme “Línguas desatadas” (Tongues Untied), de 1989, vencedor do prêmio “Teddy”, no Festival de Berlim em 1990, foi uma das melhores respostas que eu poderia acessar, ainda que tardiamente, para compreender o fenômeno do silenciamento e da potência de homens negros gays em movimento.

Produzido por Marlon Riggs, o filme de 55 minutos usa a poesia como fio condutor da obra.  Em alguns momentos potente, arrebatadora, em outros suave e envolvente, a poesia vai conduzindo o espectador por caminhos difíceis e ajuda o diretor a dar um recado muito nítido sobre as muitas camadas do racismo e da homofobia, a partir das perspectivas de homens negros gays.

“De irmão para irmão”

Os personagens se dirigem ao telespectador de forma contundente, convocando para uma conversa franca, “de irmão para irmão”, sobre racismo, discriminação, homofobia, violências, companheirismo, mobilização, amor e respeito.  A primeira impressão é de um convite para uma conversa despretensiosa e improvisada. Depois de poucos minutos, você poderá perceber que o diretor deveria estar muito seguro da mensagem que gostaria de passar e da sensação que gostaria de causar.

Além das palavras, Riggs recorre à dança, à encenação, a entrevistas e a imagens de eventos para dar visibilidade às estratégias utilizadas pela comunidade gay negra norte-americana daquele tempo para se comunicar para dentro do seu próprio círculo e se proteger das ameaças externas. Entre essas estratégias, está o silêncio, tática também usada por outras vertentes do movimento social negro ao redor do mundo, muitas vezes somada ao procedimento de não se mover, empregada por muitos grupos na década de 1960 na luta e engajamento pelos direitos civis.

Homens negros gays, talvez possam enxergar o filme como um manual. Para mim, mulher negra, heterossexual, foi uma aula incrível sobre resiliência, a ser incorporada e compartilhada. Para toda a comunidade negra e também LGBTQIA+, possivelmente é um documento histórico de grande valor.

Sobre Marlon Riggs

Marlon Riggs nasceu em 1957, no Texas/EUA, em 1957. Graduou-se em história na Universidade de Harvard e obteve o título de mestre em jornalismo na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Entre 1981 e 1994, dirigiu oito filmes. Suas obras foram exibidas em festivais, mostras de cinema e na TV, gerando inúmeros debates na sociedade americana. Em 1994, aos 37 anos, Riggs teve sua vida interrompida em decorrência do HIV/aids.

Onde assistir ao filme?

O filme está em cartaz no Instituto Moreira Salles, em São Paulo e no Rio de Janeiro, e faz parte da mostra Bixaria Negra – O cinema de Marlon Riggs. No Rio de Janeiro, é possível assistir até o dia 30 de junho, no IMS Rio e no Galpão N=Bela Maré. Em São Paulo, até o dia 29 de junho, no IMS Paulista.

Crédito da foto: Marlon Riggs e Essex Hemphill no filme Línguas desatadas. Crédito: Ron Simmons.

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Jornalista com experiência em gestão, relações públicas e promoção da equidade de gênero e raça. Trabalhou na imprensa, governo, sociedade civil, iniciativa privada e organismos internacionais. Está a frente do canal "Negra Percepção" no YouTube e é autora do livro 'Negra percepção: sobre mim e nós na pandemia'.

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