A armadilha do identitarismo para o movimento negro brasileiro.

Em que pese o identitarismo ser um debate antigo no campo da esquerda, esse tema ganhou força e densidade na agenda política brasileira, nos últimos anos. Originário do movimento feminista negro norte-americano, mais precisamente do “Combahee River Collective”, formado por um grupo de mulheres negras e lésbicas que se sentiam excluídas do movimento feminista, majoritariamente branco, o termo surge num manifesto lançado pelo grupo, no qual afirmavam: “Acreditamos que a política mais profunda e potencialmente radical vem da nossa própria identidade, ao invés de lutar pelo fim da opressão de outros”.

Se isso era verdade ou não para o contexto político do movimento das mulheres negras norte-americanas na década de 70, não vem ao caso. O fato é que a afirmação de que a “identidade” é uma “política mais profunda e potencialmente mais radical” que a luta por igualdade econômica é absolutamente discutível, ainda mais num país como o Brasil, onde a maioria absoluta da população vive em estado de pobreza tão grave que as exclui de quase tudo que possa se chamar de cidadania.

Também na década de 70, momento em que ocorreu a retomada da luta antirracista no Brasil, ainda no período militar, nossa pauta era bem diversa da norte-americana, lutávamos pela redemocratização do nosso país. E uma das nossas táticas vitoriosas foi a aliança política que fizemos com os setores democráticos e de esquerda do país, culminando com a inclusão na Constituição de 1988, do racismo como crime inafiançável, consolidada posteriormente por meio da Lei Caó (Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989).

Não fosse essa aliança, dificilmente teríamos tido sucesso em inúmeras outras vitórias decorrentes dessa premissa inicial, como o reconhecimento dos territórios remanescentes de quilombos, (Art. 68 da Constituição brasileira), a criação da Fundação Cultural Palmares (Lei Nº 7.668/88) a aprovação da Lei 10.639/2003 que introduziu na grade curricular do ensino fundamental o ensino da história da África e da cultura afro brasileira, etc. Todas elas conquistas importantes e que instituíram um arcabouço legal para as lutas subsequentes. Nesse sentido, vale a pena destacar a grande vitória que obtivemos junto ao Supremo Tribunal Federal, sobre a constitucionalidade da introdução das cotas no ensino superior brasileiro, fato este que permitiu que mais de um milhão de jovens negros tenham sido inclusos nas universidades nos últimos vinte anos.

Claro que ainda temos muito que avançar, mas a luta política não se faz numa linha reta. Há avanços e recuos decorrentes da nossa força, organização e mobilização. E é forçoso reconhecer que estamos num momento onde o retrocesso está batendo à nossa porta, fruto do avanço das forças conservadoras e da extrema direita, mas também da perda de aliados no campo democrático e de esquerda, por conta do protagonismo de uma visão identitária que não reconhece a luta democrática, nem a luta contra a desigualdade econômica, como elementos chaves para o sucesso da luta antirracista.

Os sinais que o Congresso Nacional e o Executivo estão emitindo, tanto na flexibilização das cotas para negros/as no processo eleitoral quanto na indicação para a vaga do STF são indicativos de que o movimento negro está se isolando e sem chances de vencer essas duas contendas, até porque, com exceção do Psol, todos os partidos de centro esquerda apoiam as medidas de retrocesso no campo eleitoral. Portanto, é bom ficar atento, pois o identitarismo pode se transformar numa armadilha para o movimento negro brasileiro.

Toca a zabumba que a terra é nossa!

Colunista: Zulu Araújo

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Mestre em Cultura e Sociedade pela Ufba. Ex-presidente da Fundação Palmares, atualmente é presidente da Fundação Pedro Calmon - Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

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