A barbárie batendo em nossa porta

As cenas que circularam nas redes sociais, semana passada, em que um adolescente de 17 anos, preto, pobre, drogado e com problemas psicológicos, era tatuado à força na testa com a frase “Eu sou ladrão e vacilão”, diz bem do ânimo e do espírito em que se encontra boa parte de nossa população no tocante aos direitos humanos e a civilidade.

Os torturadores para uns, ou “justiceiros” para outros, eram dois jovens, também pretos e pobres, moradores da periferia de São Bernardo do Campo, localizada na grande São Paulo.

A razão para tal barbaridade, era a suspeita de que o adolescente havia tentado roubar uma bicicleta velha de um deficiente físico num dos bairros daquela cidade. Importante reafirmar “tentado roubar”, pois o roubo, além de não ter se consumado, é negado peremptoriamente pelo adolescente, afirmando que estava bêbado e drogado e apenas tropeçou na bicicleta.

Para qualquer pessoa minimamente civilizada, esta cena seria chocante, não? Mas, para o Brasil desgovernado, insensível, sedento por sangue e vingança, este foi apenas mais um ato de “justiceiros” que acreditam que torturando, humilhando e matando pretos e pobres como eles, estarão fazendo justiça, ao tempo em que substitui o Estado ineficiente e ausente que não consegue dar-lhes nem segurança, nem fazer justiça.

É o linchamento se “naturalizando”, num país que se pratica esta brutalidade, em média 04 vezes por dia e que nos últimos 60 anos teve, mais de um milhão de pessoas participando dos mesmos, sem que praticamente ninguém fosse punido.

E o mais grave de tudo isso, é que este tipo de atitude possui forte apelo e apoio tantos nas redes sociais quanto em largos setores da nossa sociedade, muitas vezes incitada por religiosos irresponsáveis e por membros das corporações de segurança do estado que deveriam proteger a sociedade.

É a barbárie batendo em nossas portas e entrando em nossos corpos e mentes, sem pedir licença.

Os sinais desta barbárie estão visíveis por todos os lados. Seja nas brigas insanas das torcidas organizadas dentro e fora dos campos de futebol, seja nos estupros coletivos de jovens em bairros pobres do nosso país, seja na intolerância política que grassa de norte a sul, dividindo o Brasil, entre “coxinhas e mortadelas”, em vez de discutir e debater saídas para a grave crise ética que estamos vivendo.

Tudo isto devidamente registrado pelas lentes de celulares como se fosse um big brother qualquer. É a vida, o afeto e o senso de justiça escorrendo pelos nossos dedos e sendo substituídas pela morte, pelo ódio e pela insensibilidade daqueles que já não possuem mais nada a perder, nem mesmo a dignidade.

É a anomia do Estado brasileiro se fazendo presente, não apenas na condução política do país, mas naquilo que é mais sensível ao cotidiano da população, em particular a mais pobre, que é a segurança pública e a justiça.

Esta ausência do estado brasileiro tem propiciado a presença das alternativas mais perigosas e cruéis, não apenas para aqueles que momentaneamente são suas vítimas, mas para toda a sociedade, o que sinaliza a necessidade urgente de providências.

É bom ficarem atentos, pois como dizia o velho colunista carioca Ibrahim Sued “Olho vivo que cavalo não desce escada”.

Zulu Araujo

Foi Presidente da Fundação Palmares, atualmente é presidente da Fundação Pedro Calmon – Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

 

 

*Este artigo reflete as opiniões do autor. A Revista Raça não se responsabiliza e não pode ser responsabilizada pelos conceitos ou opiniões de nossos colunistas

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Mestre em Cultura e Sociedade pela Ufba. Ex-presidente da Fundação Palmares, atualmente é presidente da Fundação Pedro Calmon - Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

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