A engenhosa figura do pardo
Colunista: Maurício Pestana
Nos anos 70, uma música do consagrado Martinho da Vila trazia o seguinte refrão: “Salve a mulatada brasileira”. A letra exaltava José do Patrocínio, Aleijadinho, Machado de Assis e outros mulatinhos descreviam os versos. Demoramos décadas, mas me orgulho de pertencer a uma geração que, não só derrubou o mito do “mulato brasileiro tipo exportação”, como se dizia na época, mas também eliminamos outros artifícios que davam sustentação à democracia racial e todos os estereótipos que circundavam, o cinema, a TV, o esporte e outras manifestações culturais.
Tempos difíceis, onde pretos, de forma quase solitária em grupos espalhados por todo o Brasil, denominado de movimento ngro, denunciavam um complô contra nossa autoestima, cujo papel, repetidamente relegado a pessoas negras, nessas terras tupiniquins, era o de subalternidade, nas novelas como escravizados ou domésticos, no humor com estereótipos de alcoólatras e que falávamos errado, servindo de chacota para a branquitude vigente expor sua ideologia racista hierarquizada em função da cor da pele.
Vencemos todas as batalhas que priorizamos, mudamos o paradigma da negritude deste país, fomos responsáveis pela abolição dos pentes de ferro, instrumentos de tortura no alisamento dos cabelos das nossas mulheres, assumimos nossa cor, nosso cabelo, nossa música, criamos leis de combate ao racismo, ousamos até colocar um artigo na Constituição do país, tipificando o racismo como crime inafiançável e implementamos uma das nossas maiores conquistas, que foi somar a figura de pretos e pardos, vítimas em quase igual situação do racismo, da exclusão, e nos tornamos assim 56% da população, os mais excluídos e discriminados, abrimos passagem para investimentos públicos e leis, pressionamos para o surgimento das ações afirmativas brasileiras.
Mas, como já disse outro mestre da nossa música popular, Tom Jobim: “O Brasil não é para principiantes” e como toda lei tem sua brecha, a tal figura do “pardo”, categoria criado apenas em nosso país com o firme propósito de enaltecer uma imagem que está a caminho de tornar o branco aceitável em uma sociedade racista, que estabelece privilégios de acordo com a tonalidade da cor da pele ou do fenótipo, ganhando protagonismo nesse processo, gerando, assim, confusão e apropriação em um campo já bastante fraudado por brancos inescrupulosos que se passam por negros em concursos e outras medidas reparatórias se investindo das brechas da autodeclaração de cor.
E são essas figuras que agora, sim, com um firme propósito político, emergem com a força dos números do IBGE, como um quase resgate da democracia racial brasileira, mostrando o quanto estamos “evoluindo” em uma sociedade mais justa, igualitária e boa, sobretudo para os pardos, categoria mais abrangente e ”democrática” nos dias de hoje; afinal, são a maioria, pois nesta confusão indenitária que vão de Flávio Dino, agora ministro do Supremo Tribunal Federal, ao ACM Neto, na Bahia, todos devidamente enquadrados, registrados, nos dados do IBGE, como pardos, portanto, dignos de receber e disputar todos os direitos das políticas afirmativas destinadas para os que, até há pouco tempo, estavam à margem da nossa sociedade, a população negra.
O que se começa a desenhar, ou melhor, a se enterrar são as políticas públicas, pois esses dados em breve mostrarão um país diluído, onde quase todos serão pardos, e brancos aqui serão uma ínfima minoria, como disse Chico Buarque de Holanda ao responder sobre a cor de seu neto, filho de Carlinhos Brown: “Branco no Brasil somente se o goleiro Taffarel casar com a Xuxa e tiverem um filho”.
A grande verdade é uma só: o Brasil tem que assumir o que alguns países da Europa têm realizado e esta semana o estado de Nova York anunciou estudar fazer: temos que ter políticas reparatórias aos descendentes de escravizados, que construíram este país e hoje, além das marcas pretas estampadas em sua pele, continuam à margem da sociedade brasileira. Esses negros descendentes de escravizados têm endereço, têm cor e têm história e histórico de exclusão racial e social e os números do IBGE sabem exatamente quem são, onde se encontram econômica e socialmente em nossa sociedade. O resto não passa de manobra de quem quer destruir tudo que vem sendo construído como política pública de igualdade racial no Brasil!