A luta negra no Brasil perde o registro fotográfico de seu maior icone,Januário Garcia

Zulu Araújo

Uma dor imensa e uma tristeza sem fim, me tomou por inteiro ao receber a noticia sobre a partida para o andar de cima do meu querido amigo e parceiro de jornada – Januário Garcia. Conhecido na intimidade, como Janu, apesar de seus quase dois metros de altura.

O conhecia de há muito, afinal ele era uma das maiores referências do movimento negro brasileiro na década de 70 quando iniciei minha militância.  Foi Presidente de uma das mais importantes organizações do combate ao racismo no país, o IPCN (Instituto de Pesquisas e Cultura Negra). Tornei-me seu amigo já no século XXI, quando dirigia a Fundação Palmares e tive a honra de publicar o seu primeiro livro de fotografia, intitulado: 25 anos do movimento negro no Brasil – 1980/2005, registro histórico dos mais importantes acontecimentos da luta contra o racismo no país, no período. Mais que isto, um documento fundamental para o entendimento dessa saga que tem sido o a luta pela igualdade racial na contemporaneidade brasileira.

À época disse o seguinte sobre o livro: “As fotos, os textos e os personagens que passeiam por esta publicação, como se fossem verdadeiros Zumbis da Liberdade, representam muito mais que um registro da memória e das ideias do movimento negro brasileiro nos últimos 25 anos. São na verdade parte da vida, dos sonhos, das dores, das alegrias e do desejo de milhões de negros brasileiros que participaram e participam da luta pela construção de um Brasil digno, solidário e democrático, tanto do ponto de vista econômico quanto racial. O registro criterioso e sensível feito pelas lentes do fotógrafo/militante Januário Garcia não deixa dúvidas – a caminhada foi árdua, difícil, cheia de altos e baixos e de conflitos, mas valeu a pena”.

Com certeza Janu sinto-me honrado de ter partilhado e compartilhado com você tantas e tantas conversas, angústias, mas sobretudo trabalhos. Do mesmo modo que me sinto honrado em ter privado de sua amizade, do seu sorriso largo e sincero e do seu vozeirão incisivo e poderoso quando discordava. Você fez o bom combate com coragem, determinação e sabedoria. Lembro-me sempre de sua frase antológica para definir a importância da presença negra no Brasil: “Existe uma história do povo negro sem o Brasil; mas não existe uma história do Brasil sem o povo negro”.

Por isto mesmo que quando vemos nos dias atuais, a comunidade negra brasileira se organizando das formas mais criativas possíveis, seja nos grupos culturais, nos blocos afros, nos cursinhos de pré-vestibulares, nos quilombos, nas bandas de reggae, nos grupos de capoeira, nos bailes funks, nos partidos políticos, no movimento hip hop ou nas religiões de matriz africana, buscando viabilizar o exercício pleno da cidadania, pelo respeito as nossas manifestações culturais e religiosas, pelo direito de acesso ao mercado de trabalho, ao lazer sem perseguições das milicias e dos grupos de extermínios e até mesmo pelo direito de ir e vir, podemos afirmar com absoluta certeza, mais uma vez, que valeu a pena sua luta Janu.

“Apesar de tanto não e de tanta dor que nos invade. Somos nós a alegria da cidade. Apesar de tanto não e de tanta marginalidade. Somos nós, a alegria da cidade.”. A sua partida nos deixa triste, mas nos deixa também a certeza de que precisamos honrar o seu legado e continuar a luta. Viva Januário Garcia.

Toca a zabumba que a terra é nossa!

Mais sobre Januário Garcia

Começou como cinegrafista, mas tornou-se fotógrafo em 1975, ao estagiar no estúdio de Georges Racz.
No fotojornalismo sempre atuou como freelancer, com passagens pelo Globo, Jornal do Brasil, O Dia, A Tribuna, Manchete, Fatos & Fotos e Revista da Unesco. Trabalhou também com grandes agências de publicidade do Rio de Janeiro e fez capas de discos de artistas como Tom Jobim, Caetano Veloso, Chico Buarque, Fagner, Belchior, Fafá de Belém, Lecy Brandão, Raul Seixas e Edu Lobo.
Desde 1976 participa do Movimento Negro, junto ao qual vem fazendo a documentação da presença da população negra no Brasil, no arquivo denominado Documenta Brasileira de Matrizes Africanas. Parte deste processo está resumido no livro “1980/2005 — 25 anos do Movimento Negro no Brasil”. Nos últimos anos estendeu este registro para toda a América Latina, resultando em outro livro a ser lançado ainda este ano. Tem também fotografado comunidades judaicas em várias partes do mundo.
Entre várias outras, apresentou no prédio da Secretaria-Geral da ONU, em Nova York, a exposição Retratos de um Povo: o Cotidiano da Vida dos Afro-brasileiros.

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