TEXTO: Mariana Brasil | FOTOS: Shutterstock e Acervo Agência Globo | Adaptação web: David Pereira
Saiba as origens do Movimento Negro no Brasil | FOTO: Shutterstock
Era 18 de junho de 1978 quando Robson Silveira da Luz, um feirante negro de 27 anos, foi acusado de roubar frutas em seu local de trabalho. Levado para o 44º departamento de polícia de Guaianazes, zona leste de São Paulo, foi torturado e morto por policiais militares sob a chefia do delegado Alberto Abdalla. Semanas depois, um grupo de 4 jovens foi impedido de jogar vôlei no hoje extinto Clube de Regatas tietê. Fazia 90 anos da abolição da escravatura.
Em resposta a esses fatos, um grupo de militantes negros se reuniu em um casarão no início da Rua da Consolação, em São Paulo, para discutir a construção de um movimento que pudesse mobilizar o Brasil contra a discriminação racial. Na lembrança de Hélio Santos, doutor em economia, administração e finanças e militante do movimento negro brasileiro, a manhã daquela reunião, que geraria muita repercussão nos anos vindouros, foi gasta discutindo o nome que o movimento teria. “Éramos eu, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, os irmãos Celso e Wilson Prudente e muito mais gente”. O nome que prevaleceu foi Movimento Negro Unificado – nascia assim o MNU.
A primeira decisão tomada pelo grupo recém-formado foi ir às ruas protestar. Na fria manhã do dia 7 de julho, posteriormente transformado em data comemorativa do Dia Nacional de Luta Contra o Racismo, mais de três mil pessoas se reuniram em frente ao Theatro Municipal de São Paulo – palco, em 2013, de grande parte das manifestações contra o aumento na tarifa dos transportes. A manifestação de então, intitulada Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial, não era, obviamente, bem vista pelo governo vigente: era a época da ditadura presidida pelo general Geisel, e a política estatal se esforçava em ignorar a questão racial e em mostrar o país como uma democracia das raças. Em um ambiente de muito medo, os manifestantes agitavam cartazes e clamavam palavras de ordem em meio a agentes infiltrados do Serviço Nacional de Informação (SNI) e da Polícia Federal. “Eu lembro de vários policiais federais infiltrados, inclusive negros, se passando por jornalistas e entrevistando Lélia, Abdias e os outros dirigentes do movimento”, rememorou o professor Hélio.
A militante negra Lélia Gonzalez | FOTO: Acervo Agência Globo
Em um documento que se encontra atualmente no arquivo Ernesto Geisel, depositado no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, um agente da repressão estatal escreveu: “Realizou-se em São Paulo, no dia 7 julho de 1978, na área fronteiriça ao Theatro Municipal, junto ao Viaduto do Chá, uma concentração organizada pelo autodenominado ’Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial’, integrado por vários grupos, cujos objetivos principais anunciados são: denunciar,permanentemente, todo tipo de racismo e organizar a comunidade negra. Embora não seja, ainda, um movimento de massa”. Os dados disponíveis caracterizam a existência de uma campanha para estimular antagonismos raciais no País e, paralelamente, revelam tendências ideológicas de esquerda. A presença no Brasil de Abdias do Nascimento, professor em Nova Iorque, ativista negro, ligado aos movimentos de libertação na África, contribuiu para a instalação do já citado “Movimento Unificado”. Outro documento do mesmo ano advertia que “esses movimentos, caso continuem a crescer e se radicalizar, poderão vir a criar conflitos raciais.”
A manifestação seguiu pacífica e, apesar da tensão, terminou sem casos de violência policial. Mas a vida da maioria dos seus organizadores não foi a mesma nas décadas que se seguiram. “Durante esse período da luta dos anos 70, o meu telefone foi grampeado várias vezes por conta da minha militância. O meu e de outros. O MNU era considerado pelo governo como subversivo, o racismo era um tema tabu”, relembra Hélio. Ivair Alves dos Santos, professor de Ciências Sociais na UNB e vice-presidente do primeiro conselho da comunidade negra, criado no governo Montoro, em São Paulo, também esteve presente na manifestação. Lembra com tristeza das consequências que viu seus amigos sofrerem por terem participado de um movimento que buscava direitos em tempos de ditadura. “Aquilo afetou profundamente a vida das pessoas, de uma forma muitas vezes negativa. Muitos que lideraram aquele processo tiveram a vida profissional e pessoal modificada, acabaram perseguidos pela polícia, pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), tiveram uma vida muito conturbada. Alguns foram levados ao suicídio por essa perseguição. As principais lideranças pagaram um preço alto, nunca usufruíram do sucesso daquele movimento, nunca foram lembradas ou efetivamente homenageadas.” A luta de 1978 mudaria muita coisa nos anos seguintes. Apesar das consequências funestas para muitos, a manifestação de 7 de julho de 1978 catalisou um sentimento de insatisfação e de luta por direitos contra o racismo que estava plantado em comunidades negras do país inteiro.
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