A roupa é cara, mas porque o trabalho de costura é tão desvalorizado?

Na sexta-feira passada, comemoramos o dia da costureira e observei que todas as postagens comemorativas se referiam a este trabalho no gênero feminino. Isso nos ajuda a pensar sobre a relação entre gênero, raça, classe e suas interseccionalidades, e como isso se coloca no campo da moda. Esta sempre foi uma indagação minha, primeiramente por ver mulheres negras como eu sempre ocupando os espaços subalternizados na cadeia produtiva de moda, mesmo que eu os compreendesse como posições essenciais e centrais tanto intelectual, quanto criativamente.

Trabalho com moda há muitos anos, sempre pude perceber a diferença racial no camarim de um desfile. De uma maneira geral, via que as pessoas que assinam as coleções, bem como a maioria das produtoras de moda ou pessoas que ocupam postos ligados à intelectualidade, eram de maioria branca, mesmo na cidade de Salvador. Apenas nos eventos em África pude me deparar com profissionais majoritariamente negros, seja no camarim ou na passarela. Mais do que uma divisão visual ou de origem, sempre me incomodou a maneira como estas mulheres – sim, em maioria são mulheres – eram tratadas pelas pessoas que ocupavam esses cargos vistos como especiais. Por isso questiono, mesmo sabendo que é muito caro comprar 1 m de tecido, linha de aviamentos de qualidade, a costura, que é o trabalho de materialização de uma criação, está cada dia mais desvalorizada.

Recentemente, assisti a um vídeo onde uma pessoa entrevistava um grupo de pessoas brancas num evento e pedia que informassem quanto custou cada item no seu look ou outfit – como se referiam no vídeo, usando mais um termo em inglês mesmo no Brasil. Ali, com muito orgulho, as pessoas informavam investimentos que variavam de R$ 4.000,00 há quase R$ 20.000,00 vestidos em um só corpo. Como designer de moda, ciente dos custos de investimento em pesquisa, modelagem, produção, beneficiamento de tecido, até a construção de imagem e demais custos para venda desse produto, jamais posso dizer que é possível produzir roupa por meio de processos que sejam respeitáveis e sustentáveis socioeconomicamente, de maneira não onerosa, pelo menos aqui no Brasil. O que coloca em pauta o que chamamos de moda, no sentido imaterial da palavra. Moda como produção de sentido e significado, como elemento de mediação para construção de valor agregado.

Observemos que o que se consome com R$ 20.000,00 não é a roupa no seu sentido material, e nem uma obra de arte, ou peça exclusiva artesanal ou de alta costura.  Naquele contexto é basicamente medida de inserção social e validação de status no seu meio de convívio real, virtual ou imaginado. Quando falo do convívio imaginado, estou me referindo às inúmeras cópias das grandes marcas disponíveis e muito vendidas no mercado de réplicas e falsificações. É exatamente no ato desse tipo de consumo que podemos compreender o significado da palavra moda.

Escrevendo esse texto, lembro que parte dessa reflexão teórica eu não pude comunicar no ano de 2011, quando tinha acabado de ingressar como docente, através de concurso, da Universidade Federal da Bahia, no Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade.  Nessa ocasião, ao final do meu primeiro semestre em sala de aula, na entrada da sala, encontrei um estudante – homem, cisgênero, branco, jovem de classe média e provavelmente heterossexual – que me abordou falando que seria meu aluno no semestre seguinte, informou que tinha lido o meu currículo na Plataforma Lattes e observou que eu tinha muitas produções na área de moda. O garoto continuou com ar de ironia dizendo que como eu seria professora da disciplina Gênero e Linguagem, ele ficou na dúvida se eu iria ensinar a turma a costurar. Calmamente respondi: a costura é um saber -fazer tradicional e, historicamente, no Nordeste do Brasil, característico de mulheres negras e pobres. Infelizmente mesmo sendo designer, sou também acadêmica e por isso infelizmente não consegui aprender a costurar. Gostaria muito, pois é um trabalho bem complexo e importante. No entanto, se você não estiver entendendo que estou falando e nem pode assumir a motivação da sua pergunta, lhe indico que você leia aqui esses dez livros para que você aprenda, no semestre que vem, a me fazer perguntas mais respeitosas. Depois disso, nunca mais o vi.

CAROL BARRETO

Mulher Negra, Feminista e como Designer de Moda Autoral elabora produtos e imagens de moda a partir de reflexões sobre as relações étnico-raciais e de gênero.  Professora Adjunta do Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade – FFCH – UFBA e Doutoranda no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade – IHAC – UFBA, pesquisa a relação entre Moda e Ativismo Político.

 

 

*Este artigo reflete as opiniões do autor. A Revista Raça não se responsabiliza e não pode ser responsabilizada pelos conceitos ou opiniões de nossos colunistas

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