“A VIDA É UM MOINHO”

Na última semana, Salvador presenciou dois grandes eventos vinculados à cultura negra. O primeiro, contou com a presença da ativista norte-americana Ângela Davis que no Salão Nobre da Reitoria da Universidade Federal da Bahia discorreu sobre o movimento das mulheres negras e suas perspectivas para o cenário atual.

Em que pese a grande afluência de público (lotou as dependências da Reitoria) e a eloquência da convidada, a sensação deixada pela aguerrida fala da histórica militante era de que o passado nos visitava para nos alertar da sua importância, mas também para percebermos que a vida é um moinho e o mundo girou.

No caso do musical do Cartola, a impressão que tive era de que o presente revisitava o passado, para nos indicar a complexidade da vida humana, particularmente de um negro, no Brasil, na metade do século XX e das alternativas pessoais e coletivas que a ele se apresentava.

Do mesmo modo, tive a sensação de que não há como buscar fora soluções para os problemas de entro. Precisamos, inevitavelmente,  de caminhos próprios (análises e propostas) para o enfrentamento e superação da discriminação e exclusão a que os negros foram submetidos em nosso país.

O musical nos apresenta realidades singulares e dolorosas, tanto no plano individual quanto no coletivo, de um personagem e de uma população pobre, discriminada e excluída (negra), na grande metrópole brasileira do século passado. Soa como a realidade do negro brasileiro batendo na porta da intelectualidade, não mais como ideal de pureza ou de sofrimento, mas como parte de uma engrenagem cruel que o mundo capitalista tem nos reservado.

Apesar de Cartola ser uma figura do bem, talentoso, criativo e absolutamente solidário com sua origem e consciente da sua condição de negro, ele é vítima tanto do racismo clássico vigente na sociedade, onde compositores e cantores da classe média branca compravam músicas de artistas populares e se apropriavam da criação e do lucro, como também da ganancia dos seus “iguais” que lhe roubam o primeiro lugar, de forma desconcertante e antiética obrigando-o a afastar-se definitivamente  da sua maior criação – a  Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira sua cria maior.

Mas, as lições não ficam por aí, o musical de Cartola nos apresenta respostas objetivas para a luta que temos travado no campo da cultura, no sentido da inclusão plena do negro neste mercado de trabalho. Da apresentação de temas e temáticas da nossa história. Da valorização da nossa cultura e dos nossos artistas.

O elenco de 17 atores (todos negros), realiza uma performance impecável, onde o talento e o profissionalismo se mesclam de maneira quase perfeita. Na verdade eles são atores – bons atores – negros. E isto faz com que o espetáculo cumpra sua missão maior que é a de apresentar um dos personagens mais emblemáticos da cena musical brasileira no século passado, com a densidade que a questão racial brasileira requer no momento.

Ou seja, não basta ser negro, talentoso, criativo e boa gente para que alcancemos nossas vitórias. É preciso conhecer a nossa realidade, ter consciência da nossa complexidade (individual e coletiva), respeitar a diversidade, ter a democracia enquanto elemento estratégico das nossas ações, assim como apresentar propostas factíveis para com a nossa realidade e o nosso povo.

Daí, não caber, em nenhuma hipótese, em nosso repertório de lutas, propostas que levem a exclusão ou discriminação, sejam elas de gênero, raça ou econômica.

Toca a zabumba que a erra é nossa!

 

Zulu Araujo

Foi Presidente da Fundação Palmares, atualmente é presidente da Fundação Pedro Calmon – Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

 

 

 

*Este artigo reflete as opiniões do autor. A Revista Raça não se responsabiliza e não pode ser responsabilizada pelos conceitos ou opiniões de nossos colunistas

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Mestre em Cultura e Sociedade pela Ufba. Ex-presidente da Fundação Palmares, atualmente é presidente da Fundação Pedro Calmon - Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

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