Amâncio, de Ronaldo Fernandes
“Ronaldo Fernandes traz da dramaturgia a capacidade envolver o leitor em uma atmosfera que desperta a curiosidade para apresentar Amâncio, um personagem que ajuda a subscrever as masculinidades negras.
As histórias, que inicialmente parecem simples, revelam conexões surpreendentes sobre a vida de um homem negro e nordestino atravessado pelo sexo, desejo, assédio, abandono, desamor, racismo e homofobia em diversas fases de sua vida”.
Rachel Quintiliano
Esse foi o texto que escrevi sobre o livro para compor a quarta capa do primeiro romance de Ronaldo Fernandes, que escancara um tema delicado: a solidão do homem negro homossexual.
O personagem que intitula a obra é quem vai a cada capítulo descortinando trechos da própria história. As memórias são permeadas de inquietudes e retratam a descoberta e vivência da sexualidade. Cada relato é atravessado por experiências que por vezes esbarram em violências assentadas no racismo, machismo e homofobia.
A obra, publicada pela editora Paraquedas, nasceu como peça teatral e apresenta recortes reais e ficcionais de relatos ouvidos pelo autor no período em que viveu com Amâncio, seu tio. “Por meio das histórias que fui ouvindo do meu próprio tio e de pessoas que conviveram com ele, pude ampliar o olhar para a história de tantos homens negros, nordestinos e homossexuais que sofreram abusos e violências sem que os reconhecessem como tais.”
A ideia de fazer do espetáculo uma obra literária veio em um momento de fragilidade do autor. “O livro nasceu num período em que estive com problemas de saúde e precisei me isolar”. E completa: “Esse isolamento me trouxe perdas, inclusive de amigos queridos que não entenderam a minha ausência e isso me lembrou meu tio, que apesar de estar sempre rodeado de amigos, me pareceu solitário na negação da sua sexualidade”.
Ronaldo conviveu com seu tio Amâncio dos três aos 17 anos, atribuindo a ele uma participação ativa na construção da própria identidade, ainda que eles nunca tenham conversado um com o outro sobre a orientação sexual do tio, já falecido. “Esse diálogo que nunca tivemos em vida, só pode acontecer pela arte: primeiro na peça e agora no livro”, conta.
Por um olhar mais atento e amoroso para homens negros e homossexuais
“Amâncio” é composto por 27 histórias que se passam ora em Carpina, Zona da Mata, interior de Pernambuco, ora em São Paulo, capital paulista. Não há uma linearidade temporal, a narrativa intercala lembranças desde a infância até a velhice do protagonista. O autor define esse estilo como romance fragmentado. “Sempre foi uma característica minha como dramaturgo que acabei levando para a literatura”, explica Ronaldo.
De maneira corajosa e honesta, Amâncio narra os próprios anseios, assombros, temores e medos. Há descrições detalhadas dos desejos e impulsos sexuais do então menino e, ainda, como essas emoções são deturpadas pela violência real e simbólica ao qual ele é submetido reiteradamente.
Com destreza, Ronaldo desloca o leitor para dentro das experiências devastadoras vivenciadas por Amâncio. Cada capítulo é entremeado por um assunto que se desdobra até alcançar o acontecimento principal. Essa cadência com a qual a trama evolui envolve o leitor e o instiga a seguir para a próxima página.
Ao remontar a vida de um homem negro que era também afeminado, homossexual e morador do interior do nordeste, o autor expõe as vulnerabilidades às quais o protagonista estava sujeito e implicitamente evoca um olhar mais atento e amoroso para aqueles que passaram pelos mesmos percalços. Para Ronaldo, as mensagens do livro podem ser descritas quase como um processo terapêutico que envolve quatro passos. “Aceitação, compreensão, entendimento e expurgo”, define.
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