As mulheres negras e seus chapéus de igreja

Tradição nasceu em meio a escravidão e chegou ao seu auge em posse presidencial

Por: Lucas de Souza Martins, de Atlanta

Edição 235

A indústria da moda e a questão racial americana conviveram sob tensão desde a época colonial. No momento em que o tráfico escravista trazia africanos para o novo continente, o destino mais comum destes eram as plantações de algodão localizadas no sul do país. A produção têxtil estava diretamente ligada à exploração do trabalho escravo. Mas, ainda assim, esta mesma indústria serviu como força de resistência antes mesmo da abolição da escravatura, em 1862. Desde os primórdios de sua vida em uma nova terra, a mulher afro-americana fez da moda uma ferramenta de resistência. Quem já não conferiu os famosos chapéus utilizados por membros de igrejas negras em filmes e seriados, como A Cor Púrpura? A tradição definitivamente não é recente. O fato é que ela está presente desde o final do século XIX e persiste até os dias atuais. Nos tempos pré-abolição, os cultos dominicais eram a única oportunidade semanal da mulher negra de realçar sua identidade. A ideia de usar o chapéu vem da interpretação do texto bíblico da carta de São Paulo aos Coríntios, quando o apóstolo recomendava o uso do mesmo por cristãs durante a realização de cultos religiosos.

Com a entrada do novo século, ainda que a lei americana estipulasse a escravidão como ilegal no país, a prática do uso do chapéu de igreja permaneceu como elemento de expressão da cultura afro. Era comum que mulheres negras fossem empregadas como trabalhadoras domésticas e, portanto, a igreja seguiu sendo a única possibilidade de expressão cultural. O ornamento também era visto como uma forma de honrar a Deus. Entre as décadas de 1900 e 1960, o país testemunhou a formação de uma classe média afro-americana, com formação universitária pelas principais instituições de ensino negras do país e o estabelecimento de empresas, indústrias e
bancos geridos pelos mesmos. A moda evangélica, aliado com o já tradicional chapéu, tornou-se um símbolo de status social. Não foi à toa que tal tradição passou a ser contestada nos atribulados anos 1960 e 1970, época do
movimento dos Direitos Civis e da Guerra do Vietnã, principalmente pelas jovens mulheres negras que viam naquele vestuário um símbolo da burguesia afro-americana. Foi entre o final dos anos 1990 e o início dos anos 2000 que o uso do tradicional chapéu voltou com força as igrejas no país, especialmente em ocasiões como Dia das Mães e celebrações da Páscoa, quando costumam ocorrer as populares competições do ornamento mais belo entre as irmãs (quem se lembra de algo similar no seriado Todo Mundo Odeia o Chris?).

TV Time - Everybody Hates Chris S03E14 - Todo Mundo Odeia a Páscoa (TVShow  Time)
Reprodução

O claro apse da tradição, que começou com resistência de mulheres escravizados na América colonial, se materializou na posse do primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos da América.

Quando Barack Obama fez o juramento presidencial, em 2009, Aretha Franklin surgiu triunfante com seu chapéu típico de igreja ao cantar “My Country Tis of Thee” (“Meu País é de Ti”, em tradução livre para o português), um dos primeiros hinos nacionais dos EUA, para mais de 1,5 milhão de presentes ao evento em frente ao Capitólio, em Washington. Aquilo que começou como forma de resistir às dores e repressões da escravidão chegou ao seu auge diante dos olhos do planeta. Ao falecer, em 2018, não faltam lutas na justiça para obter o adereço usado por Franklin como herança. Dentre os que requisitam o agora histórico chapéu, estavam quatro filhos da cantora e o próprio presidente Barack Obama, que deseja o expor em seu museu presidencial, em Chicago, atualmente em construção.

Werk
Folha de S.Paulo - Ilustrada - Aretha Franklin afirma ter dado risada do  playback de Beyoncé - 23/01/2013
Reprodução

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