Diretora solicita censura a livro sobre racismo na escola chamando-o de “Nojento”
Vencedor do Prêmio Jabuti de 2021 de romance literário, o livro “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório, é alvo de polêmica em uma escola de Santa Cruz do Sul, cidade no estado do Rio Grande do Sul.
Na sexta (1º), a diretora da Escola Ernesto Alves, Janaina Venzon, classificou a obra como inadequada aos estudantes de ensino médio. Em vídeo postado em seu perfil do Instagram, Venzon lê trechos do livro.
“Lamentável o Governo Federal através do MEC adquirir esta obra literária e enviar para as escolas com vocabulários de tão baixo nível para serem trabalhados com estudantes do ensino médio. Solicito ao Ministério da Educação buscar os 200 exemplares enviados para a escola. Prezamos pela educação dos nossos estudantes e não pela vulgaridade”, escreveu a diretora na legenda da postagem.
“Para mais uma informação, deixando claro: Os professores não escolheram esta obra literária. A escola não escolheu nenhuma obra literária. As obras literárias estão sendo escolhidas pelo Governo Federal. Desconheço o critério de escolha por parte do Governo, só penso que deveriam analisar antes, para depois enviar para as escolas trabalharem”, segue o texto.
O livro havia sido selecionado via Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), programa que, junto ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), compra e distribui livros e materiais didáticos para professores e estudantes de escolas públicas de todo o país.
As editoras se inscrevem para participar do PNLD em prazos definidos pelo FNDE e divulgados em edital. As obras inscritas passam por triagem técnica, física e pedagógica feita por especialistas. Os professores devem participar da análise e escolha dos livros, e o registro das obras escolhidas é feito pelo diretor da escola.
O vereador Rodrigo Rabuske (PRD), de Santa Cruz do Sul, também divulgou um vídeo em suas redes sociais na sexta (1º) em que repudia a obra.
Contatada, a Secretaria Estadual da Educação (Seduc) do Rio Grande do Sul diz que “ninguém da coordenadoria regional de educação mandou recolher os livros”.
Em nota oficial, informa que “a escolha das obras literárias é realizada diretamente pelas equipes gestoras das escolas. Elas integram um catálogo previsto no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), do Ministério da Educação (MEC).”
O Ministério da Educação também enviou nota oficial. “O Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) é uma relevante política do Ministério da Educação com mais de 85 anos de existência e com adesão de mais de 95% das redes de ensino do Brasil. A permanência no programa é voluntária, de acordo com a legislação, em atendimento a um dos princípios basilares do PNLD, que é o respeito à autonomia das redes e escolas”, começa o texto.
“A aquisição das obras se dá por meio de um chamamento público, de forma isonômica e transparente. Essas obras são avaliadas por professores, mestres e doutores, que tenham se inscrito no banco de avaliadores do MEC. Os livros aprovados passam a compor um catálogo no qual as escolas podem escolher, de forma democrática, os materiais que mais se adequam à sua realidade pedagógica, tendo como diretriz o respeito ao pluralismo de concepções pedagógicas.”
“O Avesso da Pele” conta a história de Pedro, um rapaz de 22 anos, que escreve em primeira pessoa a “verdade inventada” sobre o seu pai, Henrique, professor de literatura assassinado pela polícia em Porto Alegre. A obra joga luz sobre a fratura íntima causada pelo racismo.
A Companhia das Letras, que publicou “O Avesso da Pele”, disse repudiar qualquer ato de censura e fez uma postagem em seu perfil do Instagram. Segundo o texto, o livro “foi aprovado por uma banca de educadores, especialistas e mestres em literatura e língua portuguesa juntamente com outros 530 títulos”.
“Para chegar ao colégio em questão, ainda precisou passar por aprovação da própria diretora, que assinou o documento de ‘ata de escolha’ da obra e agora contesta o conteúdo do livro. Esses dados são transparentes e públicos”, diz a legenda do post.
“A retirada de exemplares de um livro, baseada em uma interpretação distorcida e descontextualizada de trechos isolados, é um ato que viola os princípios fundamentais da educação e da democracia, empobrece o debate cultural e mina a capacidade dos estudantes de desenvolverem pensamento crítico e reflexivo. O que se destaca em ‘O Avesso da Pele’ não é uma cena, tampouco a linguagem, mas sim a contundente denúncia do racismo que se imiscui em todas as nossas relações, até as mais íntimas.”
O autor da obra também se manifestou em suas redes. “Após repercussão e de uma moção de um vereador, a 6° CRE mandou recolher os exemplares das escolas e bibliotecas até que governo federal se manifeste (…). As distorções e fake news são estratégias de uma extrema direita que promove a desinformação. O mais curioso é que as palavras de ‘baixo calão’ e os atos sexuais do livro causam mais incômodo do que o racismo, a violência policial e a morte de pessoas negras”, escreveu.
Jeferson Tenório também é autor de “O Beijo na Parede” e “Estela sem Deus”, além de escritor e professor de literatura. Em 2022, ele usou suas redes sociais para dizer que vinha sofrendo ameaças de morte após anunciar uma palestra que faria em uma escola de Salvador. Segundo ele, se trataria de uma represália a “O Avesso da Pele”.