E O SANGUE CONTINUA NO ASFALTO
Zulu Araújo
Pouco mais de quatro anos após o brutal assassinato da vereadora Marielle Franco e do seu motorista Anderson Gomes, o caso continua insolúvel e um silêncio macabro tenta encobrir ou apagar a todo custo a responsabilidade do aparelho de segurança do estado do Rio de Janeiro neste crime hediondo. É inadmissível que um crime de tamanha repercussão e com tantas evidências, que tenha se encontrado, até o presente momento, poucos indícios ou provas que leve à prisão e consequente punição dos autores materiais e intelectuais desta barbaridade.
Repito aqui o que disse em março de 2019, em artigo nesta mesma revista Raça: “A execução brutal da vereadora Marielle Franco, do PSOL do Rio de Janeiro, apesar de chocante, não é algo isolado dentro da crescente onda de violência que assola o país. É uma crônica de muitas mortes anunciadas. Há anos, o Rio de Janeiro vem sendo o grande laboratório da barbárie, do narcotráfico, dos grupos de extermínio, das milícias e da violência policial no seu grau mais perverso. E o que é pior, com o beneplácito e a conivência, quando não a participação, do próprio aparelho de Estado carioca.” E, lamentavelmente, parece que o enunciado acima está a se confirmar.
Os tiros que atingiram a vereadora Marielle e o seu motorista Anderson, também atingiram a democracia brasileira, ou seja, o bem maior de toda e qualquer sociedade que deseje ser chamada de civilizada. Em verdade, este assassinato a sangue frio é um escárnio para com o processo civilizatório brasileiro. Mais que isto, este crime
apresenta para o mundo um país que não respeita a lei, os direitos humanos, nem muito menos o seu povo. É o império da lei do mais forte, associada à lei do abate. A bancada da bala que agora assumiu o poder se fazendo presente de forma clara e desafiadora. É a junção do racismo com o feminicídio, a covardia, a impunidade e o desprezo mais profundo por tudo que signifique civilização.
Esse crime é também símbolo da conivência, da insensibilidade e irresponsabilidade com que boa parte da nossa sociedade, incluso os poderes da República, tem tratado a violência no Brasil.
Continuam valendo no Brasil contemporâneo os versos do compositor “Seu Jorge” – “A carne mais barata do mercado é a carne negra”. E tem sido sobre essa carne que a violência, muitas vezes conduzida pelo aparelho de segurança do Estado brasileiro, tem se abatido sem dó nem piedade, em particular contra a comunidade negra e mais particular ainda contra a sua juventude. Claro que é preciso dar um basta nesta situação e, mais
claro ainda, que devemos continuar exigindo o esclarecimento definitivo desse brutal assassinato.
Mas, isto só não basta, o que esse assassinato nos mostra e nos indica é que há algo muito mais sério e importante em jogo nesse momento em nosso país: a Democracia. Não podemos, nem devemos permitir que, em nome da segurança ou de qualquer outro argumento falacioso, esse instrumento tão duramente conquistado em nosso país seja posto em risco de forma tão brutal, nem muito menos que os nossos representantes eleitos
popularmente para assegurá-la tenham suas vidas ceifadas de forma tão covarde ou tenham que fugir do país por se sentirem inseguros e não serem obrigados a encontrar a paz dos cemitérios, como ocorreu com o deputado federal Jean Wyllys.
Por isto mesmo, muito mais do que os lamentos e denúncias sobre a morte desta corajosa mulher, precisamos unir forças, articular as instituições democráticas no Brasil e no exterior e mobilizar a nossa sociedade para fazer com que as conquistas alcançadas até agora sejam asseguradas e que os direitos democráticos de nossa população sejam definitivamente consolidados.
Viva Marielle Franco!
Toca a zabumba que a terra é nossa