É preciso sair do casulo
Texto: Theo Van Der Loo
Quando comecei a me engajar na luta contra o racismo estrutural existente no Brasil, pude notar que a vasta maioria dos afro-brasileiros aplaudiu a intenção das pessoas e empresas quererem se engajar, genuinamente, na questão racial e da desigualdade, que vem permeando nossa sociedade, sem trégua, durante séculos. É preciso reconhecer que o Brasil avançou em muitas frentes, menos na questão humana.
Sem dúvida, o protagonismo é da comunidade negra brasileira, mas para poder avançar na “reformatação” do nosso entorno é preciso o engajamento de todos, negros e não negros, até porque quem criou esta situação, que faz tanto dano ao nosso país, não foram os negros.
Todos sabemos qual é a parte da população que sofre com as consequências. Se não fosse algo tão grave e crônico, não estaríamos aqui escrevendo sobre isso. O “problema” teria se resolvido naturalmente, por si só, uma vez que é tão óbvio que algo não está certo. Não é preciso ser nem muito sensível ou muito inteligente, para saber que algo está errado em relação à inclusão de negros e negras na nossa sociedade. Refiro-me aqui especificame especificamente àquelas posições e profissões normalmente ocupadas por não negros, como se fosse uma “reserva de mercado”.
É evidente que o abismo social, que se desenvolveu durante séculos, vem aumentando ano a ano. Os privilégios (históricos) permitiram que uma parte da população pôde dar pulos no seu desenvolvimento individual e outra parte apenas alguns ou nenhum passo. Sou testemunha das diversas iniciativas para reduzir o espaço entre estes dois mundos, o que muitas vezes é rotulado como GAP em inglês ou VÃO, em português.
Costumo dizer que, para quem está no poder, está tudo bastante bem e é muito conveniente deixar tudo como está, no “piloto automático”. Vale lembrar o que dizia Albert Einstein: “Loucura é querer resultados diferentes fazendo tudo exatamente igual!
Até recentemente a grande maioria das iniciativas contra o racismo institucional e a desigualdade eram iniciadas por afro-brasileiros, que tinham poucos recursos e, sobretudo, sem poder e voz. Felizmente, principalmente graças à mídia social, já podemos notar que, cada dia mais, muitos outros grupos estão aderindo a esta “luta”. Finalmente, depois de quase 500 anos, estamos começando a caminhar juntos. Precisamos desconstruir, demolir velhos hábitos para poder criar novos hábitos. Começando pela educação de nossos filhos pequenos, avançando nas universidades, empresas e instituições, inclusive na classe política.
Existe uma situação peculiar e curiosa que venho constatando durante minhas interações com afro-brasileiros e reflexões que faço constantemente sobre o racismo: é o fato de alguns profissionais negros, membros da alta liderança, bem-sucedidos, acharem “que está tudo bem”. Ouvi pessoas negras relatando que não se sentem discriminadas, sempre tiveram oportunidades, não sofrem microagressões, sendo sempre respeitadas. Com todo respeito, neste momento passa pela minha cabeça que talvez exista uma cegueira, uma forma de ingenuidade ou até uma forma de mentirinha, atrás dessas histórias. Em resumo, são pessoas negras que falam e se comportam conforme o script dos não negros.
Em uma ocasião interagi com um ex-CEO, afrodescendente, já aposentado, de uma multinacional europeia. Perguntei o que ele tinha feito pela causa racial durante sua carreira. Ele respondeu: “pois, é, não fiz muito não, dediquei-me ao meu trabalho e carreira. Hoje vejo que podia ter feito mais”.
Não quero aqui fazer julgamentos, pode ser que décadas atrás a forma de abordar o tema racial nas empresas fosse algo muito mais complexo e delicado do que é hoje. Apenas me surpreendo quando histórias similares a esse alto executivo acontecem. Pois, de uma certa forma, como pessoa não negra que sou, esta situação e tipo de comportamento, parece como algo “não lógico, não natural”. Além disso, não me conformo quando estes profissionais negros, bem-sucedidos, são usados por muitos brancos, como um exemplo, um modelo, para ilustrar e argumentar que no Brasil não tem racismo. “Veja o que este negro está dizendo, o que ele conseguiu atingir na vida. Se ele pode, qualquer um pode”. Em seguida, surge ainda um comentário final. “Aliás, ele conseguiu tudo isso sem cota, foi por mérito. Veja bem, não sou racista, sou meritocrata”.
Conheci outros profissionais negros, que reconhecem a existência do racismo institucional, mas decidiram proativamente por não se engajar em grupos de afinidade nas empresas ou organizações fora do ambiente de trabalho. Para mim isso foi outro fato curioso. Eu, como não negro lutando, contra o racismo, e uma pessoa negra preferindo não mexer na questão e ficar no seu espaço, que foi conquistado com muito es
esforço e sacrifícios.
Recentemente, já alguns anos depois de termos criado o grupo de afinidade na empresa onde eu trabalhava, uma ex-colega me procurou para explicar por que preferiu não se engajar no ativismo corporativo em prol da igualdade racial, naquela época (2015). Achei que foi um desabafo corajoso e muito compreensível. Ela relatou que estava tão feliz por tudo que tinha construído e conquistado na sua vida pessoal e profissional, que tinha medo de abalar essa estrutura de segurança pelo qual tanto lutou. Era como se fosse uma bolha de proteção, ou melhor, um casulo.
Fico feliz em constatar que, hoje em dia, ela se engaja aberta e publicamente sobre o tema, relatando sua história. Imagino que, pelo mesmo motivo, deve haver muitos profissionais negros que não se engajaram ativamente na luta contra o racismo durante suas carreiras.
Eu não tenho dúvidas que esses profissionais são uma referência, uma inspiração para muitos outros afro-brasileiros. Seria uma pena permanecerem “encasulados”. É importante que rompam seus casulos, deixem seu porto seguro e comecem a se engajar, conquistando mentes e corações.
É fantástico ver negros e brancos juntos, cada um fazendo a sua parte, nesta jornada contra o racismo e redução da desigualdade, ambas tão importantes para o Brasil.