Eleito o melhor estudante do mundo, jovem conta que passou a infância em campo de refugiados
Nhial Deng criou – e ainda lidera – projetos para jovens refugiados em Kakuma, no Quênia, e acredita que a educação é a principal chave para um mundo mais justo
“Eu acredito firmemente no poder transformador da educação, uma força capaz de abrir portas para um mundo de possibilidades ilimitadas, independentemente da origem ou das circunstâncias de uma pessoa.” Essa é a apresentação de Nhial Deng em seu LinkedIn. Nascido na Etiópia, Nhial, de 24 anos, foi eleito o melhor estudante do mundo pelo Global Student Prize 2023. A premiação anual, promovida pela Chegg.org, concede US$ 100 mil (aproximadamente R$ 490 mil) ao estudante que mais impactou positivamente a aprendizagem, a vida de seus colegas e a sociedade como um todo. Dois estudantes brasileiros estavam entre os 50 finalistas.
Escritor, universitário e ativista comunitário, Nhial viveu por 11 anos no campo de refugiados de Kakuma, no Quênia – quando chegou, a cidade passou a ser o lar de mais de 230 mil refugiados e solicitantes de asilo de mais de 10 países diferentes.
“Ali, descobri que a educação era a única ferramenta que eu poderia usar para realizar meu sonho de me tornar jornalista. Mas não demorou muito para eu perceber as muitas barreiras à minha frente e as oportunidades educacionais muito limitadas”, contou o jovem ao site da ONU (Organização das Nações Unidas).
A paixão pela comunicação veio do pai, que era contador de histórias. Todos os dias depois da escola, Nhial se sentava ao seu lado e, acompanhados dos vizinhos, ouviam no rádio as notícias sobre o Sudão do Sul (sua família foi obrigada a fugir da guerra civil sudanesa rumo à Etiópia). “Quando a guerra ia acabar? Quando seria seguro voltar para casa? Eu ouvia atentamente enquanto eles analisavam as notícias e discutiam assuntos mundiais. O rádio do meu pai me apresentou ao mundo fora da minha aldeia. Eu ficava fascinado pelos apresentadores de notícias da BBC e comecei a imitá-los, sonhando em me tornar jornalista para contar histórias da minha comunidade na emissora”, relembra. Pela relação familiar, ele se identifica até hoje como “um refugiado sul-sudanês”.
Em 2010, milícias armadas incendiaram sua aldeia na Etiópia, e Nhial, sozinho, foi enviado para sua para a cidade de Kakuma, no Quênia. Retomou o contato com a família quatro anos depois, por telefone. Ele já conseguiu se encontrar com sua mãe e seis irmãos, que agora vivem no Quênia, mas ainda não teve a oportunidade de ver seu pai, que mora na Etiópia, pessoalmente.
“Cheguei a Kakuma frustrado, perdido e traumatizado, mas minha vida deu uma guinada assim que voltei à escola. A escola era um lugar seguro onde encontrei esperança, coragem e consolo – comecei a sonhar com um futuro brilhante novamente”, relata.
Em Kakuma, onde permaneceu até 2021, Nhial retomou o hábito aprendido com o pai, reunindo-se diariamente com os colegas refugiados sempre ao final das aulas para contar histórias, dividir sentimentos sobre a violência dos conflitos em seus países de origem e compartilhar sonhos e planos para o futuro.
Acolhimento e protagonismo juvenil
Em 2017, Nhial fundou o projeto Refugee Youth Peace Ambassadors (Embaixadores da Paz para Jovens Refugiados, em tradução livre). Com o objetivo de criar um espaço seguro para que os jovens refugiados pudessem conviver e desenvolver soluções para os desafios enfrentados, o projeto alcançou mais de 6 mil jovens por meio de palestras sobre empreendedorismo, cultura de paz e atividades recreativas.
“Neste projeto, notei as diferentes barreiras que mulheres e meninas enfrentam no campo de refugiados. Então, começamos a aplicar uma abordagem interseccional e de gênero à nossa programação”, comenta Nhial. Ele também lançou o SheLeads Kakuma, voltado ao debate sobre equidade de gênero: o programa tem duração de seis meses e é focado no empoderamento e na preparação para a faculdade das jovens da comunidade. “Não podemos falar de educação sem falar de gênero e equidade”, acredita. Paralelamente, Nhial também criou um clube de jornalismo em sua escola para contar histórias de sua comunidade.
Minha visão é um mundo onde a paz, a educação e os sonhos não sejam luxos, mas direitos humanos básicos para cada criança, em qualquer lugar.
Ao concluir o ensino médio, Nhial teve que depender principalmente de seu smartphone para fazer cursos em áreas como direitos humanos, assuntos internacionais, inglês e jornalismo. “Contando apenas com meu telefone e alguns centros de aprendizado digital, realizei cursos online gratuitos, incluindo os da Amala, uma organização que desenvolveu um currículo internacional de ensino médio e outros cursos para jovens deslocados de seus países. Também iniciei projetos comunitários para capacitar outros jovens”, escreveu Nhial em artigo para a CNN.
Com a pandemia da Covid-19, Nhial lançou uma campanha de conscientização digital em suas redes sociais para combater a desinformação, baseado em fontes confiáveis como a Organização Mundial da Saúde e o Ministério da Saúde do Quênia. A iniciativa alcançou mais de 40 mil pessoas em Kakuma e Kalobeyei.
No vídeo abaixo, você acompanha um dia na vida de Nhial no Quênia, em 2020. Basta clicar em configurações para ativar as legendas em português
“Quando terminei o ensino médio, não tive a oportunidade de frequentar uma universidade, assim como a maioria dos refugiados que vivem em campos, ou mesmo a grande maioria que vive em cidades. Eu não via esperança de cursar a universidade”, conta Nhial, em artigo publicado na CNN. Apenas 5% dos refugiados em todo o mundo estão matriculados em universidades ou outros programas de ensino superior, de acordo com o relatório educacional de 2021 da ACNUR, a Agência da ONU para Refugiados.
“Eu queria ser livre, explorar o mundo, obter um diploma universitário e me tornar jornalista, ganhar a vida e sustentar minha família. A maioria dos refugiados não têm acesso às oportunidades que podem transformar esses sonhos em realidade. Esses campos deveriam ser temporários, mas as políticas de imigração limitam a capacidade de trabalhar, circular livremente e buscar uma educação. Embora eu sonhasse com outra vida, eu não tinha sequer um passaporte válido e visto de viagem.”
Ao descobrir o programa de Estudos de Paz e Conflito da Universidade da Califórnia, em Berkeley (Estados Unidos), Nhial disse: “É aqui que eu quero ir”. Ele conta que, ao receber a carta de aprovaçãoaceite, entre mais de 112 mil candidatos, dançou e cantou em comemoração — até descobrir que, como estudante internacional, não era elegível para ajuda financeira. Mas por meio da ONG Amala, um grupo de orientadores universitários se ofereceu para apoiá-lo. “Duas semanas depois, a Universidade de Huron, no Canadá, me ofereceu uma bolsa integral de quatro anos. Hoje, sou um orgulhoso estudante da Huron.”
Futuro acadêmico e apoio às origens
Nhial cursa Estudos Globais e Comunicações Digitais na universidade canadense. Ele também trabalha como consultor e coordenador do Conselho de Educação para Refugiados da ONG Visão Mundial. Seu trabalho comunitário em Kaluma, que já impactou mais de 20 mil jovens, segue ainda mais forte.
Um de seus atuais projetos é o Kakuma Book Drive, movimento liderado por estudantes que reúne livros didáticos e visa a construção de uma biblioteca e centro comunitário para jovens no campo de refugiados de Kakuma. Inclusive, metade do prêmio de US$ 100 mil recebido por Nhial no Global Student Prize (onde concorreu com quase 4 mil estudantes de 122 países) será doado para essa iniciativa.
Nhial também coleciona prêmios internacionais: o Queen Elizabeth II Platinum Jubilee Award, pelo ativismo humanitário, o World Vision Hero for Children Courage Award 2023, por sua dedicação na defesa de refugiados e jovens, e o FilmAid Student Award 2021, reconhecimento pelo seu trabalho com refugiados.
“Hoje, tenho a sorte de participar de conferências e integrar alguns conselhos consultivos, onde advogo pela educação de refugiados, incluindo o Conselho de Educação para Refugiados do Canadá e a Força-Tarefa Global da ACNUR para Ensino Superior. Já dei entrevistas na CNN, BBC, CNBC e Al Jazeera, e meus textos foram publicados tanto pela CNN quanto pela Al Jazeera”, conta ele, sem deixar de falar da urgência em ouvir os refugiados. “Políticos e mídia precisam conversar mais com refugiados do que sobre refugiados”. Até o final de 2022, 108 milhões de pessoas foram deslocadas à força em todo o mundo. Em entrevista ao jornal The Guardian, ele falou sobre o potencial dos refugiados: “Eu acredito que todos têm algo a oferecer”.