Em busca de mim, de Viola Davis

A atriz esteve no Brasil para dilvulgar o filme “A mulher Rei”.

Prepare seu coração antes de virar a primeira página do livro “Em busca de mim”, lançado em 2022, pela atriz e produtora de cinema, Viola Davis, especialmente se você for  mulher e negra.

São 266 páginas publicadas em português pela editora Best Seller, com tradução de Karine Ribeiro, que Viola Davis narra sua própria história, desde a infância até os dias atuais. O livro é uma espécie de conversa com ela mesma, uma autoterapia que explica a mulher extraordinária que ela é desde muito pequena.

O percurso é tortuoso, a pobreza, a violência, o alcoolismo, os dilemas de uma família numerosa e sempre em risco. Os pesadelos e os sonhos de alguém que muito cedo teve que aprender a brigar e sobreviver são constantes em toda a publicação.

A história de Viola Davis, especialmente todos os percalços que ela atravessou e ainda atravessa, podem atingir em cheio o coração das mulheres, das negras e das pobres e, só por isso, já seria uma publicação a recomendar.

Ainda muito pequena, Viola Davis teve que lidar com uma perda irreparável. Também entendeu muito cedo que a pobreza poderia aniquilar a moral ou qualquer outro valor similar.

Em um trecho, ainda nas primeiras páginas do livro, quando contava sobre a pobreza e a fome que acompanhavam sua família, ela disse: “[…] No entanto, quando estávamos com muita fome, a Gabe’s era a loja mais fácil de roubar comida. […] Nossa relação com ele (dono da loja) era preenchida de amor e admiração misturada à vergonha de ter que se agarrar desesperadamente à sua bondade, a qual muitas vezes nos salvava. Quando você está lutando para sobreviver, a moralidade vai para o espaço”.

E, assim, Viola Davis e sua família seguiram a vida. Os obstáculos eram cotidianos. Além da insegurança alimentar, estavam os desafios com a higiene, a ausência de água quente e roupas adequadas para sobreviver no inverno congelante de Central Fall, local onde nasceu e foi criada.

Apesar disso, a menina, a jovem e a adulta Viola Davis não parou de correr, de lutar, de brigar até que não tivesse mais forças. Eu fiquei com a impressão de que ela fez isso tantas vezes, que, em algum momento, só fazia isso tudo porque era a única coisa que sabia fazer.

São 17 capítulos em que ela narra, em primeira pessoa, sua própria história e visão de mundo. Obviamente, os trechos mais sensíveis são aqueles em que a pobreza, a violência, inclusive a sexual, e a saúde negligenciada persistem em tornar a vida de uma das melhores atrizes que o mundo já viu, em um verdadeiro inferno na Terra.

A desgraça de tudo isso é que esse não foi o inferno particular de Viola Davis, foi também de suas irmãs, de seu pai, de sua mãe e ainda é da maioria das pessoas negras de Central Falls ou aqui mesmo, em qualquer cidade brasileira.

“[…] Existe um abandono emocional que vem com pobreza e com o fato de ser negro. O peso do trauma geracional e da luta por necessidades básicas não deixa espaço para mais nada. Você apenas acredita que não passa de lixo.”

Esse trecho, assim como muitos outros, fez total sentido para mim. Perdi as contas das vezes que a combinação de racismo, sexismo e pobreza me fizeram sentir assim. Viola, querida, eu vejo você!

Apesar disso tudo e de muitas outras coisas que o livro revela, Viola Davis perseguiu com toda força o sonho de se tornar atriz. É inequívoca sua conquista a despeito dos prêmios que alcançou. O livro também dedica muitas páginas e capítulos nessa construção do “Ser Atriz”, com letra maiúscula mesmo. Viola Davis encarou com esmero essa tarefa. Estudou em profundidade o ofício e até hoje estuda cada personagem antes e enquanto a interpreta.

Seu corpo, sua pele preta retinta, seu olhar, tom de voz e movimentos são colocados integralmente à disposição das personagens, algo que, segundo o livro, também a leva a conhecer e a buscar a si mesma.

Dois capítulos estrategicamente colocados na segunda metade do livro demonstram isso, ao indicar que a compreensão de que o perdão e a abertura das portas e janelas para a entrada do amor foram fundamentais para o seu “despertar” e para o “desfrutar da felicidade”.

Viola Davis é uma mulher de fé e os diálogos diretos ou indiretos com Deus transparecem ao longo de muitas páginas. E, em uma parte específica, ela descreve uma dessas conversas com sinceridade e objetividade, quando deixa muito nítido o que deseja. Ela pede um homem negro, mais velho e disponível para ela. Na hora, eu me lembrei da minha avó materna que, em um dia de desespero (e eu já contei isso aqui na Raça), pediu para Deus, um homem negro, viúvo e três filhas, enquanto orava, sentada em um banco no Jardim da Luz (uma praça muito conhecida de São Paulo). Minutos depois, um homem que seria o meu avô se sentou ao lado dela e eles viveram juntos até o fim da vida dele, dando, assim, início à minha família. Viola, querida, você deveria ter conhecido a minha avó, a Dona Olívia.  

Mas, voltando ao livro, sugiro também que aquelas pessoas que sonham, trabalham e estudam para se tornar atores e atrizes, que leiam o livro. As dicas da Sra. Davis são muitas e o paradigma que ela quebrou ao interpretar uma mulher negra, astuta, inteligente, bem-sucedida, sexualizada, na série How to Get Away With Murder, diz muito sobre como lutar e transpor cotidianamente o obstáculo do racismo.

Lançamentos

“Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas”, de Selma dos Santos Dealdina. Vozes historicamente silenciadas encontram em Mulheres quilombolas espaço para compartilhar saberes a partir de suas perspectivas, como faziam nossos ancestrais reunidos em torno do fogo, no ritual de transmissão e perpetuação de conhecimentos basilares para a comunidade. As autoras trazem para a roda uma diversidade de pautas em geral invisibilizadas na sociedade, contribuindo com suas visões de mundo, seus conhecimentos acadêmicos e suas experiências de vida para abrir novas possibilidades de debate. 

Avôa“, de Ronaldo Fernandes, nasceu de seu desejo de resgatar as memórias reais ou inventadas de sua avó, mãe, irmã e amizades. A partir do registro dessas lembranças, os poemas do autor contam sua própria história, ressignificando momentos e personagens de sua trajetória a partir da autoficção.

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Jornalista com experiência em gestão, relações públicas e promoção da equidade de gênero e raça. Trabalhou na imprensa, governo, sociedade civil, iniciativa privada e organismos internacionais. Está a frente do canal "Negra Percepção" no YouTube e é autora do livro 'Negra percepção: sobre mim e nós na pandemia'.

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