Entrevista exclusiva com Glória Maria
Por: Flávia Cirino
Glória Maria faz revelações exclusivas em última entrevista à Revista RAÇA.
Nesta edição, estamos abordando a paternidade. Como mulher negra, vitoriosa, com uma carreira admirável, mostra-se cada vez mais realizada com a maternidade de Laura e Maria. Como é fazer as vezes de pai e mãe, com toda a correria da sua profissão? Não é difícil. Eu também não fui criada com pai. Meus pais se separaram cedo e minha mãe criou a gente sozinha, já tenho essa ideia. Nós negros temos por tradição ter uma sociedade matriarcal, então isso vem naturalmente pra mim. Suprir o papelde pai não é uma coisa difícil, complicada. É uma coisa natural. A gente sempre se acostumou a ser cuidada pela mãe, pela avó, pelas tias… eu simplesmente estou dando prosseguimento àquilo que aprendi ao longo da minha vida. Eu estou fazendo com minhas filhas exatamente o que as mulheres da minha família fizeram comigo, criar me, educar-me, faço a mesma coisa. Então, a figura do pai, elas têm uma figura masculina, um pai emprestado, mas elas têm. Mas quem resolve e administra tudo sou eu, de maneira muito natural, sem trabalho, sem peso, sem dificuldade porque aprendi assim.
Você optou por estar sozinha. Observa a resistência contrária à sua opção?
As pessoas acham que a mulher nasceu para ter um marido e um pai e às vezes têm um estranhamento: “como você consegue segurar sozinha essa onda?” Eu digo: tudo bem, eu seguro essa onda porque Deus deu ela pra mim, eu não tenho outra opção. É difícil? É. É duro? É complicado? É. Eu viajo, as meninas acabam ficando sozinhas. Às vezes o pai fica com elas um pouco, mas eu conto comigo mesma. É difícil porque eu tenho que viajar, tenho que trabalhar, tenho que viver. É difícil, mas foi a escolha que eu fiz pra minha vida e não importa o que as pessoas acham, realmente não. Eu vivo do jeito que acho que devo viver, não me importo muito com a opinião das pessoas, não. Tem quem torça o nariz porque eu decidi criar as minhas filhas, sozinha. Mas, como elas não são Glória Maria, eu não me preocupo com isso porque tenho energia para fazer isso. Pra mim é tranquilo.
Você é uma mãe de fato, a mãe tradicional. É difícil manter esse controle, sendo uma cidadã do mundo? É dificílimo, porque elas veem as amigas sendo criadas com liberdade total e acham que em casa tem que ser assim também. Só que eu fui criada de maneira tradicional, a criança respeita, obedece. Elas têm liberdade pra fazer tudo. Mas não para desrespeitar, para serem mal-educadas. Aí não, aí sou aquela mãe tradicional. Não bato, mas quando falo com meu tom de voz firme, elas já sabem. Quando falo duro, está falado. Elas sabem que acendeu o sinal vermelho. Às vezes dizem: “você está falando alto, mamãe”. Quanto mais baixo você fala, mais zangada você está. Quando você fala alto, acabou. Digo: “não estou falando alto. Você acha que estou falando alto porque está fazendo coisa errada”. Elas não me dão ordem. Eu respeito a posição delas, a gente conversa muito, todo dia a gente tem uma conversa. Temos uma coisa clássica: tentamos todo dia jantar juntas. Elas estudam em escola integral e saem de casa às 07 da manhã, têm balé, street dance, terapia, fono, acabam voltando pra casa 18h30, 19h, ficam o dia todo longe. Então o nosso jantar é sagrado, a não ser que eu esteja viajando ou gravando. A gente janta as três juntas pra elas me contarem como foi o dia, como foi na escola, se teve problema, se não teve, então eu tento fazer da nossa uma família tradicional, normal, clássica. Nem sempre consigo, mas eu tento sempre.
Com tudo isso, você quis aproximar as meninas das raízes e as levou para a África do Sul. Para que ir até lá, vivendo num país de maioria negra?
Sempre deixei muito claro para as minhas filhas que o racismo é uma coisa viva e real, e que a gente tem que viver para combatê-lo. Só que aqui é muito difícil você explicar, porque a gente vive num mundo branco. Elas estudam numa escola de elite em que a maioria das crianças é branca, vão ao teatro, vão à festa, vão ao cinema, tem mais criança branca; então, até a criança conseguir entender isso, você tem que ter uma sensibilidade primeiro pra ir fazendo as coisas no momento certo, porque às vezes a criança não está preparada pra isso. A vida inteira eu tentei explicar pra elas que a gente vive num mundo branco e que não é essa a nossa realidade. Só que aqui, pra você conviver com negros, é complicado, porque como a gente vive, tem uma certa abertura para o mundo, pra essa sociedade, a gente acaba vivendo num mundo branco. Aqui elas têm esse mundo negro quando a gente vai pra casa da Regina Casé, quando tem festa lá porque é tudo misturado, a mesma quantidade de branco e de preto, mas isso é raro. Então, achei que deveria levá las pra África pra elas terem noção de que o mundo é negro também, que o mundo é nosso! Pra elas virem que realmente existem muito mais negros no mundo do que parece. E elas ficaram surpresas. A primeira coisa que elas ficaram surpresas, disseram: “mamãe, aqui tem muito preto!” Porque a gente chegava nos hotéis mais legais e tinha um monte de família negra. A gente ia para as praias, para os restaurantes, e tinha um monte de gente negra. Então elas viram que o mundo é diverso, coisa que aqui no Brasil elas não têm chance de ver.
Antes dessa viagem houve questionamentos em relação à etnia, à origem racial?
Houve vários momentos. Como elas estudam numa escola que tem mais brancos, a menor, a Laura, sempre me perguntou: “mas por que eu não tenho cabelo liso? Por que eu não tenho olho azul?” Eu digo: porque cada pessoa é diferente, ninguém é igual. O meu exercício é mostrar pra elas que o mundo é feito de diversidade. Tem negro, branco, índio, asiático… então eu tento mostrar isso pra elas e elas estão entendendo isso, que a gente vive numa sociedade racista ainda, porque tivemos 400 anos de escravidão no mundo, 130 de abolição só que é uma abolição que, na verdade, não aconteceu. A gente vive numa escravidão diferente do passado em que acorrentavam nossos pés, mãos e pescoço. Hoje a tentativa é de acorrentar a nossa alma, a nossa inteligência, o nosso direito de viver, porque se a gente dependesse dessa sociedade que está aí, a gente não existiria. Então, tento mostrar pra elas que nós negros temos que ser sempre mais inteligentes, melhores, mais dignos, mais íntegros, mais éticos, porque se a gente não for assim, as pessoas só admitem negro perfeito. O negro não pode ter falhas. Então eu tento mostrar pra elas qual é a realidade e, graças a Deus, eu acho que elas entendem.
Como você vê o fato de nós, negros, termos a necessidade ainda hoje de ter de provar que não somos inferiores?
A gente vai ter que passar duas gerações, se a gente veio de 400 anos de escravidão, ainda vai levar um tempo para que as pessoas entendam que não existe diferença. Eu hoje entendo isso, já sofri muito o racismo e tive que me virar sozinha porque a minha família não me preparou pra isso. A minha família não tinha cultura pra me preparar pra um mundo negro. Então eu, graças a Deus, tenho como preparar as minhas filhas. Eu vivi dentro de uma realidade de que “ah, não existe, todo mundo é igual”, porque quando você é um negro que não tem defesa, é mais fácil você pensar que você é aceito, você não se questiona. Só que como eu sou de outro tempo, desde pequena, como não tinha como questionar a minha família, eu questionava a mim mesma e vivi pra entender isso. Li, estudei, me informei, trabalhei pra poder entender por que nós, negros, éramos tratados dessa maneira. Como eu entendi, hoje eu posso passar pra elas. Agora, quantas crianças negras, a grande maioria, não tem quem mostre isso?! Elas vão ter que aprender na vida, sozinhas, sofrendo, apanhando, sofrendo a discriminação, o preconceito, e tendo que se entender, porque não tem ninguém que chegue e diga: “olha, é assim que a banda toca”. É o que eu tento fazer com elas.
Você teme não conseguir deixá-las aptas a enfrentar essas manifestações explícitas de racismo?
Eu não tenho medo. Venho preparando as minhas filhas ao longo da vida para isso. Elas estudam, leem, têm todas as referências negras, elas têm livros de negros, textos negros, bonecas negras, eu mostro o mundo negro para elas. Eu acho que aquela preparação que eu não tive, elas estão tendo. Então acho que quando elas se defrontarem, maiores, com as situações de racismo, elas com certeza vão ter que enfrentar, acho que, com certeza, elas estarão preparadas pra dizer: “olha aqui, eu sou o máximo, sou linda, eu sou a melhor de todas, eu sou a mais importante”, coisa que eu tive que aprender e hoje posso ensinar pra elas.
Laura e Maria te veem como uma mãe, como um modelo de profissional, uma famosa?
Hoje elas observam, porque onde a gente vai as pessoas falam comigo. No início elas perguntavam: “mamãe, por que as pessoas tiram fotos com você? Você é famosa?” Elas não tinham noção porque elas não veem televisão aberta, dificilmente me veem na televisão, só quando eventualmente eu mostro alguma coisa no dia seguinte, pra elas. Elas demoraram um pouco a entender, mas hoje entendem que a mãe delas, graças a Deus, é uma pessoa conhecida porque é uma jornalista, intelectual, porque estudou. Eu tenho muita alegria porque sinto que o exercício de vida delas é, mais ou menos, seguir o caminho que eu segui, aí eu já começo a respirar. Eu sou uma referência pra elas, elas ficam surpresas quando veem na rua alguém falando: “ah, Glória Maria, eu adoro você, você é minha referência, eu aprendo com você”, e elas perguntam: “mamãe, mas por que todo mundo gosta de você?” Eu vejo que elas me veem como uma referência e acho que isso vai ser muito importante pra elas nessa caminhada difícil que elas vão ter que enfrentar.
Com tudo isso, todo o seu êxito pessoal e profissional, há o estigma da mulher negra solitária…
Não tenho esse problema, a minha família me preparou pra isso, pra ser uma matriarca, autossuficiente. É difícil, porque você tem que resolver questões, quando você tem uma pessoa pra dividir, a culpa cai um pouco, o peso cai um pouco. Como eu não tenho ninguém, arco com tudo sozinha. São decisões que tenho que pesar muito pra não errar.
Como se sente em ser, mais uma vez, capa da Revista RAÇA, num mês em que também exaltamos a mulher negra, latina e caribenha?
Muito feliz. É uma publicação que há 21 anos me representa e acho importantíssimo que ela esteja cada vez mais forte. Passo nas bancas e vejo a revista, mostro para as minhas filhas e falo: “é ali que estamos representados. Aquela revista é para nós, feita por pessoas que conhecem a nossa realidade”. Precisamos que a RAÇA permaneça sendo um canal para a nossa voz, para o nosso povo. As outras revistas não nos dão uma contribuição suficiente. Parecem cumprir cota.
Olha: “A gente vive numa escravidão diferente do passado em que acorrentavam nossos pés, mãos e pescoço. Hoje a tentativa é de acorrentar a nossa alma, a nossa inteligência”.
CRÉDITOS:
Texto: Flavia Cirino
Fotografia: Guilherme Silva
Assistente de fotografia: Alessandra Gahyva
Produção: Paula Aprouch
Makeup Hair Stylist: Marcelo Hicho
Camareira: Sidneia Almeida